Muito se tem falado e escrito sobre as incoerências nas políticas tributárias e de estímulo ao desenvolvimento no Brasil. Vários exemplos demonstram que, de fato, não há a coerência esperada na execução das políticas tributárias definidas pelo governo.
Tome-se o exemplo do ágio. Durante anos, era pouco relevante a discussão que se tinha notícia acerca da amortização fiscal das despesas com ágio, realizadas pelos contribuintes. De uns seis anos para cá, aponta-se este como o maior contencioso em tramitação no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Por que?
Numa análise apressada, como não é incomum, a justificativa seria a existência de liberdade interpretativa quanto à extensão da regra que prevê a amortização fiscal inserta no enunciado dos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/1997. Este não parece ser o caso. Pode-se, de fato, mais recentemente, perceber que o próprio Carf firmou posição no sentido de reconhecer que é a verificação da causa do negócio jurídico e a aderência do uso dos institutos jurídicos aos fins colimados a eles pelo ordenamento jurídico que deve determinar a validade de determinada operação ou planejamento.
As decisões nos casos de ágio envolvendo a Vivo, Tele Norte Leste Participações e TIM, deixam clara a posição acima. Quando o ordenamento preconiza ou até induz determinado comportamento ao contribuinte, a forma legal ou o instituto jurídico por ele utilizado para alcançar aquele objetivo não podem ser ditos como ilegítimos.
Muito mais seguro, eficiente e simples seria a revogação da regra inserta na Lei 9.532/1997. Por que isso não foi feito antes? Por que, somente agora, através da MP 627/2013, é que o governo tem a coragem de alterar o regime jurídico até aqui vigente e explicitar algumas balizas para formação e amortização fiscal do ágio? De fato, é algo que não se entende. Por um lado, cria-se regra para fomentar negócios e fortalecer as empresas brasileiras. Por outro, a Receita Federal do Brasil (RFB) questiona e autua estas mesmas empresas, buscando restringir, indevidamente, o incentivo concedido.
Poder-se-ia ficar dias discutindo diversas situações semelhantes. O foco aqui, entretanto, será outra situação desse tipo. A posição da Fazenda Federal quanto à renúncia fiscal outorgada aos contribuintes que investirem em inovação tecnológica.
Não é preciso muito esforço para se perceber que o incentivo ao investimento público e privado em inovação tecnológica está na ordem do dia. Inúmeros são os artigos que dão conta da posição medíocre do Brasil em qualquer ranking de inovação que se pretenda fazer.
Ciente disso e visando a criar estímulos aos investimentos em inovação, o governo publicou a Lei 11.196/2005, a “Lei do Bem”. A despeito de os dispêndios com pesquisa e desenvolvimento tecnológico já poderem ser deduzido das bases do IR/CS há algum tempo — seja na forma de despesa operacional, seja por meio da amortização de itens registrados no ativo —, a Lei trouxe um estímulo a mais para os contribuintes[i]. Está assim vazada a regra legal:
“Art. 19. Sem prejuízo do disposto no art. 17 desta Lei, a partir do ano calendário de 2006, a pessoa jurídica poderá excluir do lucro líquido, na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, o valor correspondente a até 60% (sessenta por cento) da soma dos dispêndios realizados no período de apuração com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, classificáveis como despesa pela legislação do IRPJ, na forma do inciso I do caput do art. 17 desta Lei.
§ 1º A exclusão de que trata o caput deste artigo poderá chegar a até 80% (oitenta por cento) dos dispêndios em função do número de empregados pesquisadores contratados pela pessoa jurídica, na forma a ser definida em regulamento.”
O objetivo da norma é de clareza meridiana. Num ambiente em que a inovação e o investimento em pesquisas e desenvolvimento de projetos que tornem o ambiente econômico mais eficiente são mais do que benvindos, o governo resolveu criar renúncia fiscal como forma de estímulo privado a estes investimentos.
Como não poderia deixar de ser, a própria Lei veicula as condições para a fruição do referido benefício. O parágrafo 7º do artigo 17 c/c os artigos 22 a 24 da Lei do Bem enumeram justamente estas condições, que podem ser segregadas em quatro grupos:
1. Exigência de regularidade Fiscal
2. Exigência de contabilidade segregada
3. Exigência de contratação de terceiros residentes no país
4. Exigência de envio de informações ao Ministério da Ciência e Tecnologia — MCTI
Quanto ao primeiro item, pouco se precisa dizer. De fato, é bastante comum, no Brasil, que os benefícios concedidos tragam esta (regularidade fiscal) com uma de suas condições.
Quanto ao item dois, em princípio, pouco se poderia dizer. Obviamente que o objetivo da regra inserta no enunciado do artigo 22 da Lei visa a, apenas, dar à RFB a possibilidade de fiscalizar e os valores dos dispêndios alocados aos projetos e pesquisas que forma considerados sujeitos aos incentivos fiscais.
Com efeito, a regra está assim redigida:
Art. 22. Os dispêndios e pagamentos de que tratam os arts. 17 a 20 desta Lei:
I – serão controlados contabilmente em contas específicas;
O Decreto 5.798/2006, que regulamentou a Lei, também não inovou na exigência:
“Art. 10. Os dispêndios e pagamentos de que tratam os arts. 3o a 9o:
I – deverão ser controlados contabilmente em contas específicas;”
Mais de cinco anos após a edição das normas mencionadas, a Receita Federal publicou a IN n. 1.187/11, assim redigida:
“Art. 3º Para utilização dos incentivos de que trata esta Instrução Normativa, a pessoa jurídica deverá elaborar projeto de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, com controle analítico dos custos e despesas integrantes para cada projeto incentivado.
“Art. 18. Os dispêndios e pagamentos de que tratam esta Instrução Normativa deverão ser controlados contabilmente em contas específicas.”
Em outras palavras, se, num primeiro momento, o artigo 3º poderia veicular regra mais rígida para alocação dos dispêndios com inovação tecnológica, mais adiante, o artigo 18º apenas repete, quanto à contabilização destes valores, o mesmo que as regras de 2005 e 2006 já diziam.
Em suma, resta evidente que o objetivo que exsurge deste grupo de condições para fruição do benefício situa-se apenas no: i) necessário poder de fiscalizar que a RFB precisa ter para aferir a correção do gozo do referido benefício; e, ii) possibilidade de conciliação dos dispêndios alocados a cada projeto com aqueles registrados contabilmente pela empresa.
No caso de empresas de capital aberto, sujeitas às regras de balanço editadas pela CVM e ao regime de competência para reconhecimento de seus custos ou despesas, fica ainda mais evidente que este dever instrumental criado pela norma de isenção não altera e nem pode alterar a forma e a obrigação societária de apresentação do balanço contábil.
Ou seja, a segregação dos valores em contas específicas não pode alterar o resultado do exercício ou conspirar contra as regras contábeis aplicáveis. Precisa apenas e tão somente permitir a correta fiscalização e conciliação, por parte da RFB, em razão da renúncia fiscal concedida.
Infelizmente, não tem sido este o pensamento da Receita Federal. Não bastasse a norma de indução, que visava a estimular o contribuinte a investir em inovação e processos mais eficientes dever ser interpretada de forma consentânea com este objetivo, a Receita, em vários autos já lavrados, faz visão tacanha e desmedidamente restritiva ao que se deve entender acerca de “contabilização segregada dos custos e despesas com inovação tecnológica”.
Pior. Não bastou, em casos tais, que a própria fiscalização tivesse tido todo acesso aos custos e despesas, devidamente registradas em subcontas apartadas, ainda que de forma global, de maneira a que pudesse conciliar os valores informados na contabilidade com aqueles informados nos relatórios definidos pelo próprio governo como necessários, a serem enviados ao MCTI e inseridos na DIPJ. Achou por bem descaracterizar todo o benefício por entender que os lançamentos deveriam ter sido registrados em contas segregadas, por grupo de custos e despesas, à medida em que os dispêndios fossem sendo realizados.
Não há, à toda evidência, qualquer critério razoável a justificar esta conduta, que eleva a uma importância excelsa a forma e o dever instrumental, em detrimento do objetivo da norma e da sua essência. E mais. No caso, o faz de forma absolutamente contrária ao que preconiza a própria norma legal e a sua regulamentação que, como se viu, deixam aberta ao contribuinte a escolha sobre a forma de contabilização destes dispêndios, conquanto que o faça de forma segregada, que permita a sua correta identificação e fiscalização.[ii]
Importante frisar que, a despeito de toda a insegurança gerada pelas autuações sofridas, o Carf, em decisão recente, acabou por confirmar a tese do contribuinte, no sentido de que o controle contábil por ele feito, mesmo que não observados os rígidos padrões exigidos pela RFB sem qualquer fundamento normativo, se mostrava mais do que suficiente para atender ao que preconiza a norma legal. Restam, ainda, contudo, outros autos a serem julgados.
Em relação ao grupo três, acima mencionado, resta evidente a intenção do Governo de garantir o efeito multiplicador do incentivo, com o desenvolvimento de uma cadeia de fornecedores nacionais capazes de atender às demandas e necessidades das empresas que invistam em pesquisa e desenvolvimento de inovação tecnológica.
Por fim, no que se refere ao quarto grupo de condições aqui relacionadas, entende-se importante pontuar que o incentivo instituído pela Lei do Bem difere bastante daqueles que lhe antecederam, o PDTI e o PDTA, criados pela Lei 8.861/1993 e regulamentados pelo Decreto 949/1993. Nestes, a regra era que os Planos de Desenvolvimento fossem aprovados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), para que o estímulo fiscal fosse aplicado. Agora, com a Lei 11.196/1995, os contribuintes que invistam em processos, serviços e produtos inovadores, o fazem por sua conta e risco, pois apenas submetem ao MCTI a descrição destes projetos dos respectivos dispêndios, para fins de informação.
Assim, se por um lado, a sistemática anterior engessava o investimento, por depender de aprovação expressa do governo, por outro, dava garantias ao contribuinte quanto à fruição do seu benefício, visto que a Fazenda não poderia questionar a natureza dos investimentos como sendo em inovação.
E mais. Com a publicação da Lei do bem, o objetivo estabelecido pela Lei 10.973/2004 foi alcançado. Isso por que se afastou quaisquer dúvidas sobre o alcance do que se pode considerar como investimento incentivado. Restou evidente que o incentivo aplica-se a processos, serviços e produtos, desde que inovadores (para a sociedade, para o setor ou mesmo para a empresa) e capazes de trazer ganhos de eficiência e competitividade.
Diante deste cenário, torna-se absolutamente relevante que se aponte qual o objetivo da novel regra criada em 2005 (doze anos depois), para estimular os investimentos em inovação. Isso porque, agora, não está a RFB adstrita à manifestação do MCTI, cabendo a ela exercer a fiscalização sobre a fruição dos benefícios fiscais concedidos a estes investimentos.
Não se pode negar que a avaliação de processos e serviços caracterizados como inovadores é um desafio para a Fazenda Federal. O certo é, porém, que ela possui diversos métodos para aferir isso, sendo a manifestação do MCTI, dada em conformidade com o que estabelece a legislação, apenas o primeiro índice para isso.
Também em relação a este aspecto, é possível ver que, mesmo que timidamente, a RFB vem se manifestando, mormente no âmbito de processos de consulta, acerca da aderência dos dispêndios incorridos por contribuintes aos requisitos técnicos estabelecidos pela legislação. É o que se extrai, por exemplo, da Solução de Consulta Interna de 24/2013, recentemente exarada pela COSIT.
Enfim, espera-se coerência e, principalmente, atenção ao objetivo maior colimado pela norma. Ou seja, estimular os investimentos em inovação tecnológica que gerem produtos e processos mais eficientes e competitivos. É com este objetivo que a Fazenda precisa fazer a abordagem e análise dos projetos e investimentos realizados pelo setor privado, visando maior eficiência e produtividade. No final das contas, eficiência empresarial reflete em redução de custos e incremento de lucros, com ganhos para a sociedade e mesmo para o Fisco.
[i] A exposição de motivos da MP 255/05, no seu item 6, deixa patente que o objetivo da norma é dar cumprimento ao que determinava o art. 28 da Lei 10.973/04. O art. 2º desta lei preconizava que: “Art. 2º Para efeitos desta Lei, considera-se: (…) IV – Inovação: introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social, que resulte em novos produtos, processos ou serviços.”
[ii] Colhe-se do voto do Conselheiro Benedicto Benício Jr., extraído dos autos do Processo Administrativo nº 16682.721104/2011-21 o seguinte excerto, que resume o que se quis aqui demonstrar: “A mim fica claro que o objetivo do requisito contábil (dever meramente instrumental) imposto pelo legislador ordinário foi tão somente assegurar que as autoridades administrativas possam identificar com facilidade e clareza os dispêndios com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovações tecnológicas, para fins de fiscalização ao aproveitamento do benefício fiscal, sendo que não consigo enxergar em que o procedimento de reclassificação adotada pela Recorrente malogra tal intuito.”
Fonte: Conjur