Na já conhecida linha de absolutização de direitos praticada em terras brasileiras, algo agravado pela ausência de uma cultura cívica que preze pelo cumprimento dos deveres, quando se pensava que a vaca há muito já tinha ido para o brejo[1], começou a ser ventilado opor os direitos à intimidade e à privacidade aos testes de uso de drogas por profissionais que exercem profissões que implicam risco para si e para outros, tais como motoristas profissionais, aeronautas (pilotos e comissários de vôo), etc. Nesse ponto, a Lei Federal 12.619/2012 representou mais um avanço no sentido da diminuição do altíssimo número de acidentes de trânsito no Brasil, mas uma medida tão salutar como a advinda do diploma normativo federal vem sendo, como sói ocorrer, objeto de críticas injustificadas.
Mas, se alguns eventualmente não se importam com o risco criado para suas vidas e com a segurança rodoviária e aeroviária isso não quer dizer que isso não seja realmente importante. Na verdade, creio que a imensa maioria se importa também, apenas não sabendo de que haja quem se incomode com a fiscalização acerca do excessivo de álcool ou do uso de drogas ilícitas por parte de profissionais que atuam em atividades de risco. Aqui, mais uma vez, aparece a resistência de alguns a qualquer espécie de limites, confundido-se, mais uma vez, o gozo da liberdade em um Estado Democrático de Direito com a libertinagem própria de quem quer a anomia para si e o rigor da Lei para os outros.
Note-se, ainda, que melhor do que o tratamento dispensado pela Lei Federal 12.619/12 seria se o tema deixasse de ser tratado como questão trabalhista e passasse a ser, como realmente é por sua natureza, disciplinada como assunto de segurança de trânsito, atentando-se ao fato de que o condutor de qualquer veículo está em contato permanente com outros (transeuntes, passageiros, motoristas, etc.) que não apenas o empregador, sendo que com este a relação é patrimonial e com os demais é uma questão de vida – ou morte. E, felizmente, foi esta a postura acertadíssima do Contran ao editar recentemente a Resolução 460 de 12.11.2013 que amplia a necessidade de demonstração da ausência do uso de drogas ilícitas para todos os portadores de habilitação das espécies C, D e E, deixando a questão de ser apenas trabalhista e recebendo o tratamento como questão relativa à segurança no trânsito.
A questão da fiscalização a respeito do uso de drogas ilícitas pelos motoristas profissionais, inicialmente tratada de forma tímida, microscópica, como se fosse realmente apenas uma parte de uma relação empregatícia, fazendo-se de conta que a saúde do condutor de veículos pesados transportadores de cargas ou passageiros fosse problema contratual interpartes, na verdade, é o mesmo problema, ainda que com sinal invertido, dos conflitos a respeito da posse de terras, vez que nestes uma lide claramente individual de cunho patrimonial vem sendo tratada como se fosse uma macrolide entre a coletividade dos que não-possuem em face daqueles que possuem, ignorando-se que o sofredor do esbulho é nitidamente identificável e não pode e não deve ter que suportar a eventual inércia do poder público no que tange a promoção de políticas sociais, dentre elas a reforma agrária.
Assim, o que se viu foi uma polarização de um problema coletivo como se fosse uma questão obrigacional-laboral, felizmente solvida pelo Contran, assim como iterativas tentativas de legitimar o esbulho possessório por meio da coletivização de um conflito individual originado pela reivindicação de quem luta pela reforma agrária. Enfim, os dois exemplos mostram como a ordem vem sendo invertida em favor de uma outra ordem — e não de um estado de anomia haja vista que não há vácuo no exercício do poder — tornando-se individual o coletivo e coletivo o individual, confundindo-se o privado e o público, a casa e a praça, como se o jardim fosse problema social e a rua tivesse dono[2].
[1] A referência é proposital e homenageia o Filósofo Olavo de Carvalho que usou tal referência quando escreveu o subtítulo de O Imbecil Coletivo II.
[2] Referência proposital ao livro O Jardim e a Praça da autoria de Nelson Saldanha.
Fonte: Conjur