Confiança na Aduana e os novos paradigmas do controle aduaneiro

Nosso território aduaneiro tem passado por inúmeras transformações. Se considerarmos o período dos últimos 30 anos é notório o crescimento de exportações e importações realizadas por empresas brasileiras [1]. Consequentemente, novas normas, novos paradigmas, novos olhares. No Brasil, especialmente, se tomarmos como referência a publicação do RA/09, de 6 de fevereiro, há 13 anos, vemos mudanças muito significativas em todo o ambiente aduaneiro. Sob o olhar da Aduana, vemos grandes avanços nos procedimentos buscando tornar os fluxos mais ágeis e seguros, seguindo as diretrizes da OMA, notadamente, valendo-se da gestão de risco e do uso massivo da tecnologia da informação. Assim, também, aproximação e fortalecimento da relação com o setor privado, com uma mudança significativa de paradigma, exemplificada pelo Programa Operador Econômico Autorizado (OEA) [2].

Maior volume de transações gera maior demanda por conhecimento especializado, seja para a consultoria aduaneira, seja para representação dos intervenientes em processos administrativos e judiciais. No universo de milhares de declarações registradas [3] certo é que, percentualmente, as litigiosas representam minoria, mas os casos e temas envolvidos são muito significativos e relevantes [4]. Administrativamente, nas DRJs e no Carf, ou judicialmente, nas seções de Justiça Federal, TRFs, STJ e STF, por conseguinte, surgem mais discussões sobre temas aduaneiros.

Sobre os litígios, não é de se estranhar sua ocorrência e aumento, por serem, de certa forma, inerentes aos interesses muitas vezes conflitantes entre o Estado e o importador/exportador, mormente nas importações, face à complexidade normativa e ao peso das exigências legais. Tributa-se basicamente com quatro imposições federais, mais uma estadual. A apuração de todos os tributos passa pela tarefa, por vezes árdua e desafiadora, de se definir o valor aduaneiro e a classificação tarifária. A litigância reflete o mencionado crescimento das atividades de comércio exterior no nosso país.

Com isso, nesse mesmo período, de 2009 até os dias atuais, o Direito Aduaneiro e seu estudo também progrediram muito. O reconhecimento da sua autonomia, especificidade, conceitos e pontos de intersecção com o Direito Tributário e com outros ramos do Direito ficaram evidenciados e reconhecidos cada vez mais [5]. Mais recentemente, a pandemia estimulou muito o seu crescimento, com as múltiplas lives e webinários sobre temas eminentemente aduaneiros [6].

Para concluir esse brevíssimo registro histórico, podemos dizer que esse período de evolução e mudança foi coroado, entre nós, pela internalização do AFC/OMC e da CQR/OMA, positivando os pilares e diretrizes da Aduana moderna, focada na facilitação comercial, no compliance e na segurança da cadeia logística. Tais preceitos já vinham, há muito, sendo preconizados internacionalmente e foram incorporados em nosso ordenamento, em alterações que vêm sendo realizadas na legislação interna no período destacado, desde 2009.

Nesse contexto, nossa contribuição de hoje se motivou na publicação, no último dia 1º de fevereiro, do acórdão no REsp 1.826.124/SC/1ª T/STJ, relator ministro Gurguel de Faria. A decisão, unânime, consolidou o entendimento das duas turmas de Direito Público do tribunal acerca da discussão que se manteve muito acesa, não só nos 13 anos de vigência do RA/09, mas desde muito antes. A consolidação do entendimento sobre esse tema, pode-se dizer, não deixa de ser um marco, uma comprovação da evolução do estudo e reconhecimento da especificidade temática aduaneira. A matéria pacificada relaciona-se com conceitos genuinamente aduaneiros, não obstante também permeiem o campo de comunhão com o Direito Tributário. Foram abordados, discutidos e reconhecidos: registro da declaração e despacho de importação, seleção para canais de conferência, níveis de verificação das mercadorias de acordo com os canais de conferência, os conceitos de conferência e desembaraço aduaneiro e de revisão aduaneira, entre outros. A temática é riquíssima para aqueles que se sentem instigados por esse campo do conhecimento jurídico.

Há anos, nossos tribunais, com raras exceções, pouco conheciam e aplicavam tais conceitos. Julgadores muito mais afeitos ao já maduro Direito Tributário não viam no fato aduaneiro senão seus aspectos tributários e esse viés predominava sobre o julgado em análise. Tal era a realidade que os advogados militantes na área, éramos desafiados a desenvolver e defender as especificidades dos conceitos aduaneiros e a relevância de sua boa compreensão para a melhor análise e julgamento dos casos [7]. Esse desafio ainda se faz presente, por vezes, nas discussões aduaneiras, tanto no âmbito administrativo quanto judicial, porém, cada vez com menor incidência.

O acórdão da 1ª Turma reafirmou e consolidou decisão anterior, proferida no REsp 1.576.199/SC, julgado pela 2ª Turma, em abril de 2021, relatado pelo ministro Mauro Campbell. Em síntese apertada, referidas decisões do STJ assentaram a permissão normativa para realização da revisão aduaneira, inobstante qual tenha sido o canal selecionado para conferência aduaneira a que a DI tenha sido submetida. O entendimento firmado pela corte superior afastou a aplicação da Súmula 227 do extinto TFR, assim como a suposta mudança de critério jurídico e a aplicação do artigo 146, do CTN, como impeditivos da revisão aduaneira. Consolidou a aplicação do artigo 54, do Decreto-Lei 37/66 e do artigo 638, do RA/09, reconhecendo à Aduana dois momentos de fiscalização: “Dentro de todo o procedimento fiscal de importação (despacho aduaneiro), é preciso separar os momentos de conferência, desembaraço aduaneiro, e um segundo momento de revisão aduaneira. (….) A conferencia aduaneira exige celeridade já que a mercadoria está em zona primária ou secundária em depósito por conta do contribuinte.(…) Essa primeira oportunidade não ilide a segunda oportunidade que surge dentro do procedimento de ‘revisão aduaneira’, que se dá após o desembaraço aduaneiro…” (Resp 1.201.845/RJ, 2ª T, relator ministro Mauro Campbell).

Poder-se-á dizer, como muitos, que além de ser essa interpretação correta porque originária do órgão legitimado para fazê-lo, é correta à luz dos princípios, conceitos e, sobretudo, das normas vigentes e aplicáveis ao tema, especialmente as normas internacionais às quais o Brasil aderiu [8]. O desfecho desagrada outros tantos. Entre eles, muitos importadores que têm sua carga conferida em canal vermelho, com apresentação de documentos, prestação de informações, laudos e análises técnicas no curso do despacho e a tem desembaraçada e nacionalizada, com emissão do comprovante de importação, não uma, mas várias vezes, e não podem crer que essa análise da autoridade aduaneira assegura sua conformidade no procedimento. Preciso é não olvidar que a partir da DI nacionalizada, as indústrias, comércios, distribuidores, tradings, entre outros, compõem seus preços, transferem custos e tributos, definem margem de lucro e apuram resultados. Anos depois, a revisão das DIs com a mudança de custos tributários envolvidos tem relevante impacto [9].

Outrossim, só reforça a necessidade de muito estudo, conhecimento, capacitação e experiência dos profissionais responsáveis pelas áreas envolvidas nas empresas importadoras, já agora, cientes que o canal amarelo e vermelho não são parâmetro para segurança dos seus procedimentos.

Uma nota de atenção, aqui, seria lembrarmos a importância de preservar a confiança do administrado nos atos da Administração Pública. O primado é valor do nosso Estado democrático de Direito. É uma decorrência lógica da legalidade, da segurança jurídica, da irretroatividade, da moralidade, da razoabilidade e da proporcionalidade. Está presente, expressamente, no artigo 24 da Lindb e nos dizeres do artigo 100, III, do CTN. Casos concretos, em que a manifestação da União Federal, via fiscalização aduaneira, seja tal que crie uma confiança no importador de validação dos seus atos, não devem ser desconsiderados, se forem submetidos ao Judiciário. De toda forma, reafirme-se, o desembaraço em canal amarelo ou vermelho não assegura nada ao importador para o futuro, devendo ele se precaver por medidas preventivas de revisão própria das declarações feitas e procedimentos adotados.

Não obstante, é preciso que os estudos e discussões dos temas aduaneiros prossigam profícuos para avaliar os impactos de decisões e julgamentos, sem perder de vista a proteção da confiança do administrado na Administração Pública, algo fundamental. Nesse sentido, a Súmula Carf 161 (“O erro de indicação, na Declaração de Importação (DI), da classificação da mercadoria na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), por si só, enseja a aplicação da multa de 1%, prevista no artigo 84, I, da MP 2.158-35/2001, ainda que órgão julgador conclua que a classificação indicada no lançamento de ofício seria igualmente incorreta”) merece revisão. Ao convalidar a manutenção da multa por classificação inexata aplicada pela fiscalização em revisão aduaneira, ainda que a própria classificação tarifária, definida na autuação, esteja incorreta, deixa de prestigiar o primado da confiança do importador na autoridade aduaneira [10].

Ele não pode confiar no canal vermelho, assim como também não pode confiar na autuação. No futuro, essa última poderá ser anulada, mas a multa de 1% será mantida. O importador, ou terceiros, podem, confiando e respeitando os atos da autoridade aduaneira, pautar suas mercadorias na classificação tarifária da autuação, exatamente para evitar serem autuados e sofrerem as penalidades [11]. Se essa classificação tarifária não estiver correta e mesmo assim a multa de 1% for mantida, assume-se e convalida-se indesejada insegurança jurídica e ilegalidade.

No atual ambiente normativo aduaneiro, pautado pelos princípios e objetivos do AFC/OMC e da CQR/OMA, a confiança e a boa fé são os paradigmas a serem seguidos e perseguidos na relação Aduana-empresas. Confiamos que as discussões vão ampliando cada vez mais o conhecimento e permitindo o aprimoramento continuado dos institutos e aplicações do Direito Aduaneiro, sempre no campo da dialética construtiva sobre os pilares constitucionais.

[1] Em 1990, o Brasil exportou cerca de 34 bilhões e importou em torno de 20 bilhões. Em 2021, atingiu o recorde da balança comercial, exportando 280 bilhões e importando 219 bilhões (em US$, FOB). Os dados estão disponíveis em: https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-exterior/pt-br/assuntos/comercio-exterior/estatisticas/balanca-comercial-brasileira-acumulado-do-ano, acesso em 2/2/2022.

[2] A aproximação e trabalho em conjunto da Aduana com o Setor Privado é um dos pilares do Marco Safe da OMA, SAFE-Framework of Standards: http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/facilitation/instruments-and-tools/tools/safe-package/safe-framework-of-standards.pdf?la=en. Sobre o Programa Brasileiro de OEA, suas origens, princípios, requisitos e objetivos escrevemos artigo que será publicado em breve, na obra coletiva Temas Atuais de Direito Aduaneiro III, coordenada por Rosaldo Trevisan, que também escreve nessa coluna.

[3] No último ano, foram registradas mais de 4,4 milhões de declarações de importação e exportação. Entre 2012 e 2021, o número de declarações registradas cresceu em mais de um milhão de operações. https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/resultados/aduana, acessado em 2/2/2022.

[4] Exemplificativamente, no judiciário: discussão sobre a inclusão, ou não, da capatazia no valor aduaneiro; aumento da taxa do Siscomex, retenção de mercadorias, sujeito ativo do ICMS na importação. No âmbito administrativo: inclusão de royalties no valor aduaneiro, interposição fraudulenta e reclassificações tarifárias.

[5] Três obras de referência do início desse crescimento e do reconhecimento do Direito Aduaneiro: TREVISAN, Rosaldo, coord. Temas Atuais de Direito Aduaneiro. São Paulo: Lex Editora, 2008. MEIRA, Liziane Angelotti. Regimes Aduaneiros Especiais. São Paulo: Síntese, 2002, e Tributos sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Saraiva, 2012. Na obra Temas Atuais de Direito Aduaneiro, sobre os conceitos próprios do Direito Aduaneiro, vale a leitura do artigo de autoria do coordenador sob título: Direito Aduaneiro e Direito Tributário – Distinções Básicas, obr. cit., p. 11- 55.

[6] Em 2009, quando entidade que presidimos, a ABEAD – Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros (https://www.youtube.com/channel/UCA12CesELaxi6_7z_-seIag), foi fundada, praticamente, não havia eventos com foco em temas aduaneiros. Nesse interim também houve a fundação de Comissões de Direito Aduaneiro em praticamente todas as seccionais da OAB do Brasil. Esse fato também tem contribuído para a disseminação do estudo e conhecimento do Direito Aduaneiro.

[7] Registre-se a publicação, em 2004, da obra coletiva Importação e Exportação no Direito Brasileiro, coordenada por Vladimir Passos Freitas, então presidente do TRF da 4ª Região, reunindo artigos de desembargadores e magistrados federais. Nessa obra, inclusive, o primeiro artigo é de autoria da ministra do STJ Regina Helena Costa, intitulado “Notas sobre a existência de um Direito Aduaneiro”. FREITAS, Vladimir Passos, coord. Importação e Exportação no Direito Brasileiro. São Paulo, RT, 2004.

[8] FERNANDES, Rodrigo Mineiro. Introdução ao Direito Aduaneiro. São Paulo: Intelecto, 2018, p. 73-78; e Revisão Aduaneira e Segurança Jurídica. São Paulo: Intelecto, 2016, p. 241-251.

[9] Outra era a modalidade de lançamento no despacho de importação, não se desconhece, mas a alteração da tributação via revisão aduaneira e seus efeitos práticos foram objeto da seguinte observação do então ministro Aldir Passarinho, do STF: “Não pode, realmente, ficar o importador sujeito a variações dessa natureza, até porque há de haver uma segurança proporcionada pelo Fisco ao importador que vende seus produtos in natura, ou industrializados a terceiros, às vezes sob a base de acertos anteriores de preços, pelo que tem de incluir, no preço de venda, o ônus tributário”. RE 104.226 – 5, SC, 2ª T, rel. min. Francisco Rezek, DJU 15/3/1985.

[10] Manter a multa e tratá-la autonomamente seria como se o Carf estivesse lançando, ou corrigindo, o auto com uma outra NCM. Anula-se o auto de infração e a terceira NCM não é usada para corrigi-lo, ou promover um novo lançamento. A multa foi aplicada em decorrência do lançamento de ofício da autoridade aduaneira. Se ele é anulado, a multa também deve ser. Se ela é mantida à base da interpretação do Carf, porque julga que a NCM correta não é aquela usada pelo importador, há uma indevida carga constitutiva no julgado.

[11] Sobre o tema, é o que pensa também Solon Sehn a quem nos reunimos: http://genjuridico.com.br/2022/01/14/multa-por-classificacao-aduaneira-indevida/ acessado em 2/2/2022.

Por Fernando Pieri

Fernando Pieri é sócio-fundador da HLL Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, multiplicador do Programa OEA da RFB, presidente da Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros (Abead), fundador e ex-presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, acadêmico da International Customs Law Academy (Icla) e professor de pós-graduação na PUC-MG, Enap, IBDT, Ibmec e Cedin.

Revista Consultor Jurídico, 8 de fevereiro de 2022.

https://www.conjur.com.br/2022-fev-08/territorio-aduaneiro-confianca-aduana-novos-paradigmas-controle-aduaneiro2

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