O direito à economia de impostos

Muito embora o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não tenha concluído o julgamento da ADI 2446 que questiona a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), os contribuintes já podem respirar aliviados. Está garantido o seu direito à economia de impostos.

O alívio não virá pela decretação ou não da inconstitucionalidade da norma, mas sim pela interpretação, fixada no irrepreensível voto doutrinário da ministra Cármen Lúcia, de seu único possível alcance na ordem constitucional brasileira.

A norma questionada estabelece que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.

À época de sua edição, houve acalorado debate doutrinário a respeito de sua natureza e alcance. Uma corrente defendia tratar-se de norma geral antielisão, que permite às autoridades fiscais lançarem tributos pelo recurso à analogia, sempre que identifiquem a existência de uma motivação exclusiva ou preponderantemente fiscal para a escolha da prática de um ato ou negócio jurídico não tributável.

Trata-se, nas expressivas palavras do tributarista Alberto Xavier, de uma tributação psicanalítica pela frustração de um desejo – o desejo do Fisco de que tivesse sido escolhido o caminho alternativo fiscalmente mais oneroso, mas que o particular não escolheu, por, na sua autonomia da vontade, ter preferido um caminho menos oneroso.

A outra corrente enxergava um caráter bem mais restrito, de norma antissimulação, que conferiria ao Fisco o direito de declarar unilateralmente a inoponibilidade dos atos ou negócios praticados pelos contribuintes, quando comprovado que sua prática foi engendrada com a finalidade de mascarar a ocorrência do fato gerador.

Mesmo tendo eficácia contida – já que a sua aplicação dependeria de lei ordinária que estabelecesse os procedimentos para a desconsideração -, o certo é que depois da sua edição pulularam autuações fiscais assentes em doutrinas estrangeiras que fundamentam as normas gerais antielisivas, de que são exemplo a fraude à lei e o abuso de direito.

Essas autuações fiscais inauguraram um período de trevas no Direito Tributário brasileiro. Operações lícitas, livremente escolhidas pelas partes, efetivamente praticadas e empresarialmente motivadas com a intenção de economia fiscal foram perseguidas pelo fisco-inquisidor.

Foi, portanto, diante desse clima de insegurança jurídica que a ADI 2446 foi ajuizada. A sua fundamentação estava, essencialmente, na impossibilidade de tributação de atos ou negócios não tipificados em lei por violação do princípio da legalidade da tributação.

O voto da ministra Cármen Lúcia considerou, porém, que a norma em questão não violaria a legalidade tributária, pela simples razão de que nela não se pode enxergar uma permissão – que seria inconstitucional – de se tributar, por analogia, algo não previsto em lei como fato gerador de uma obrigação tributária. Em seu entendimento, a denominação “norma antielisão” é inapropriada, cuidando o dispositivo de norma de combate à evasão fiscal, quando o contribuinte atua de forma a ocultar fato gerador materializado para deixar de pagar a obrigação tributária devida.

Os ministros Marco Aurélio, Edson Fachin, Gilmar Mendes e Luiz Fux acompanharam o voto da relatora. O ministro Ricardo Lewandowski abriu divergência, sustentando a inconstitucionalidade da norma, no que foi acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes. O processo está com vistas para o ministro Dias Toffoli, faltando seu voto e os dos ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber.

A divergência inaugurada pelo ministro Lewandowski não está, porém, na interpretação da natureza e alcance da norma. Muito pelo contrário. De forma incisiva, seu voto afirma que o objetivo do legislador não foi impossibilitar o planejamento tributário, prática comum nas atividades empresariais, com a finalidade de buscar o caminho menos oneroso de tributos para os contribuintes, mas permitir que a autoridade administrativa desconstitua atos e negócios jurídicos nos quais forem usados artifícios juridicamente ilegítimos para burlar a ordem tributária, evadindo-se o contribuinte da ocorrência de fato gerador que deveria constituir a obrigação tributária.

A divergência está na questão da reserva de jurisdição. No entendimento do ministro Lewandowski, a decisão pela desconsideração aludida no parágrafo único do artigo 116 do CTN deveria caber sempre a um magistrado togado, considerado o princípio da reserva de jurisdição, o qual, ao fim e ao cabo, se destina a resguardar os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Daí o voto pela inconstitucionalidade da norma.

Porém, seja qual for a direção que o STF tomar, o certo é que sete votos convergiram no sentido de que o parágrafo único do artigo 116 do CTN não tem o alcance originariamente pretendido pelo Fisco de norma geral antielisão, não servindo de base legal para a exigência de tributos sobre atos ou negócios jurídicos fiscalmente menos onerosos, praticados com a intenção de economizar impostos, mesmo que tenha sido essa a única razão para sua escolha.

A maioria de votos formada no STF põe, assim, um fim à era das trevas. Ilumina-se o obscurantismo persecutório à liberdade de escolha, resgatando a segurança jurídica, arranhada pelas incontáveis violações ao princípio da legalidade da tributação, mais importante garantia conferida aos contribuintes pela Constituição.

Por Roberto Duque Estrada

Roberto Duque Estrada é sócio-fundador do BDE- Brigagão, Duque Estrada Advogados, diretor da ABDF, conselheiro do Conselho de Governança e Compliance da Associação Comercial do Rio de Janeiro, membro do Conselho Diretor da Abrasca e membro do Comitê de Assuntos Fiscais da International Bar Association.

Valor Econômico-03/01/2021

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