O não pagamento de ICMS como crime único

Um ou poucos atos de não pagamento não são suficientes para a infração, apenas o conjunto de reiteradas inadimplências.

O que era expectativa tornou-se uma apreensiva realidade. Quando o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), em dezembro do ano passado, decidiu ser crime o não pagamento do ICMS próprio, era de se esperar a abertura de inquéritos e de ações penais contra comerciantes inadimplentes. Não demorou muito.

Notícias de investigações, processos e bloqueios de bens contra empresários nesta situação – cujo número não é pequeno diante das dificuldades econômicas oriundas da pandemia – revelam a assimilação rápida da orientação do Supremo.

Um ou poucos atos de não pagamento não são suficientes para a infração, apenas o conjunto de reiteradas inadimplências.

Na última semana, a decisão foi finalmente publicada e seus fundamentos vieram a público. A longa peça de 210 páginas discorre sobre o histórico da legislação criminal referente ao ICMS, as estatísticas de inadimplência, aspectos dogmáticos e de política criminal sobre as opções do legislador diante do não pagamento do tributo em questão.

Porém, há uma consequência pouco comentada que parece surgir das premissas fixadas pela decisão da Corte.

Lendo-se o acórdão, percebe-se que o STF não decidiu que a inadimplência de ICMS é criminosa em qualquer hipótese. Ficaram demarcados com clareza seus limites: apenas devedores contumazes praticam o delito. Segundo o relator, ministro Luis Roberto Barroso: “é preciso, portanto, que se constate que a inadimplência do devedor é reiterada, sistemática, contumaz, verdadeiro modelo negocial do empresário” e que “além da própria conduta atual de inadimplência reiterada, também deve-se levar em consideração o histórico de regularidade de recolhimentos tributários do agente, apesar de episódios de não recolhimentos específicos, justificados por fatores determinados”.

Assim, se o comerciante deixa de pagar ICMS de forma pontual, por um problema financeiro concreto, mas apresenta um histórico de adimplência fiscal, não pratica o crime, na visão do voto do relator. Por outro lado, se a prática for contumaz existirá o delito. Em outras palavras, um ou poucos atos de não pagamento não são suficientes para a infração, apenas o conjunto de reiteradas inadimplências revelaria o crime descrito no artigo 2º, II da Lei 8.137/90.

A adoção desse critério tem consequências práticas importantes. A exigência da contumácia indica que o crime em questão só existe se for habitual, ou seja, só ocorre quando existir a reiteração de atos, com regularidade, porque a prática da inadimplência isolada é irrelevante ou indiferente ao direito penal.

O ponto central: em direito penal, o crime habitual, embora composto de vários atos, não consiste em diversos delitos, mas em um único. É o que ocorre com o exercício ilegal de medicina, o curandeirismo, a gestão fraudulenta. Ainda que o agente atenda pacientes ou prescreva medicamentos sem autorização, ou realize vários atos ilegais na gestão de instituição financeira, sempre será acusado de um único delito.

Ao caracterizar a inadimplência do ICMS como crime habitual o STF reconhece que a prática seguida de diversos não pagamentos, por longos períodos constitui um único crime, e não vários. A interpretação sistemática da norma penal, e a redação da decisão ora publicada não deixam espaços para interpretações diferentes.

Uma vez que a pena prevista para o delito em questão é de 6 meses a 2 anos de reclusão e multa, será sempre possível a transação penal, a suspensão condicional do processo ou a não persecução penal, a depender do caso concreto e das circunstâncias da atividade do comerciante, mesmo que a inadimplência ocorra por um longo período, praticada inúmeras vezes.

O próprio acórdão da Corte Suprema reconhece que “as consequências do reconhecimento da tipicidade da conduta não são excessivamente gravosas aos comerciantes” uma vez que “é virtualmente impossível que alguém seja efetivamente preso em razão de condenação pela prática do delito” em análise, apontando a possibilidade do uso de instrumentos de solução consensual do caso sem o julgamento.

Ainda há muito a ser analisado e discutido em decorrência desta decisão, mas a correta caracterização do crime e suas consequências é um primeiro passo para a aplicação coerente e racional de uma orientação que por ora pautará a conduta de juízes, promotores e comerciantes pelo país.

Valor Econômico – Por Pierpaolo Cruz Bottini, 26 de novembro de 2020

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