Vive a nossa geração um quadro e desafio inéditos. Para quase todos, não há memória de acontecimento desse tipo, ao menos com tal alcance. A geração atual nunca viu nada parecido.
São fatos notórios e sabidos tanto a disseminação da peste oriunda da Covid-19, quanto a decretação de quarentena geral, com isolamento o mais absoluto possível e a suspensão das atividades não essenciais. Essa medida, recomendada como necessária, atinge a atividade do empresariado, e também de profissionais liberais e autônomos.
O alcance da medida é devastador; restaurantes, fábricas, empresas de serviços, consultorias e escritórios profissionais estão fechados e, em consequência, veem seus recebimentos serem suspensos, não raro sem previsão futura de pagamento, ou os têm em patamares mínimos. Estão ameaçados de, simplesmente, não ter dinheiro em caixa e, para piorar, bancos, naturalmente receosos, estão a diminuir linhas de crédito e a aumentar as taxas de risco embutidas, ou pedir reforço de garantias. Muitos fornecedores veem-se compelidos a vender somente à vista. Ademais, já há falta de estoques.
É um desafio extraordinário a exigir medidas extraordinárias. Mas qual a situação jurídica do contribuinte ?
Há no Brasil 19.114.026 empresas ativas, das quais são micro e pequena empresas 13.804.676. E, na sua forma mais pequenina, mais singela, mas de igual ou maior importância, existem as microempresas individuais (MEI), que somam 8.074.900! Essas empresas juntas geram cerca de 70% do PIB brasileiro. Esses empresários caracterizam-se por baixa capitalização, mínimo capital de giro, que, principalmente as microempresas individuais, na verdade vivem do crédito para comprar as mercadorias e insumos. No setor de serviços a situação é pior ainda, por notória ausência de emprego de capital, vivendo basicamente do mínimo capital e do giro do negócio.
Essas empresas têm um dilema claro: sobreviver. E sobreviver significa pagar as despesas imediatas, como fornecedores, despesas da instalação e do funcionamento (luz, água, manutenção de equipamentos etc.), bem como do pessoal. Sem isso, a empresa morre.
Atrás de cada uma dessas quase vinte milhões de empresas há seres humanos e suas famílias que dela fazem seu meio de subsistência, é com elas que famílias (empresários e colaboradores) atendem a suas necessidade alimentares, como moradia, vestuários, saúde e escola, com o mínimo de dignidade.
Nesse quadro, sem sacrifício da própria viabilidade econômica, não há como pagar impostos. Não há como pagar ISS, ICMS e outros, enquanto as atividades não retomarem em tempo suficiente para gerar receita.
Ora, o princípio da capacidade contributiva inserido no § 1.º do artigo 147 da Constituição da República é direito fundamental do ser humano, e consiste em não ser exaurido economicamente além do que é possível, ou seja, pagar tributo sem colocar em risco sua sobrevivência econômica e pessoal. Ao princípio da capacidade contributiva, diz a mais autorizada doutrina, “não se pode negar a força vinculante do preceito tanto para o legislador ordinário, quanto para o intérprete e aplicador da norma e da Constituição de 1988” (Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, Aliomar Baleeiro atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, 8.ª ed., pg. 1.091). Esse princípio adveio, há mais de dois séculos, das observações fundamentais do economista Von Iusti, como difundidas por Adam Smith.
Caso na sua cobrança se ultrapasse a capacidade econômica do contribuinte, pessoa jurídica ou física, em pagar qualquer tributo — não só impostos — , caracteriza-se um confisco, pois a demanda a torna uma mera apreensão forçada de bens. Como já decidiu o STF (ADIn1.075 MG, rel. Min. Celso de Mello , “apud” Andrei Pitten Velloso, em Constituição Tributária Interpretada, 2012, p. 279), contra tal fenômeno ocorre, segundo Acórdão do pleno:
Interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita, ou ainda a regular satisfação de suas necessidades vitais.
O dever de pagar tributos também deve respeito às maiores diretrizes da Constituição, que mesmo nessa situação imprevisível e excepcional, aplicam-se integralmente.
Essa é a demanda que o Estado Democrático de Direito, se ele for realmente comprometido com seus cidadãos, terá de responder; essa é a demanda que juízes e tribunais terão à sua frente, caso os poderes executivos — federal, estaduais e municipais — falharem no respeito à Constituição Federal.
Revista Consultor Jurídico, 28 de março de 2020.