Teoria dos freios e contrapesos e o perigo do excesso de poder
Muitos setores do Judiciário e Ministério Público estão fazendo manifestações contra a aprovação do projeto da nova Lei de Abuso de Autoridade, que vai agora à sanção presidencial.
A nova lei pode vir a substituir a antiga lei de abuso de autoridade, Lei 4.898 de 9 de dezembro de 1965, período de vigência da ditadura militar. A lei 4.898/65 é suave demais nas punições e tem tipos penais difíceis de aplicar.
Segue trecho inicial da justificativa:
A presente proposição visa a atualizar a legislação em vigor que define os crimes de abuso de autoridade.
Ocorre abuso de autoridade quando o agente público exerce o poder que lhe foi conferido com excesso de poder (o agente atua além de sua competência legal) ou com desvio de finalidade (atua com o objetivo distinto daquele para o qual foi conferido). É sempre ato doloso, portanto.
A partir dessa premissa procurou-se tipificar as condutas praticadas com abuso de autoridade pelos agentes públicos.
O anteprojeto prevê que sejam sujeitos ativos do crime de abuso de autoridades os membros de Poder, os membros do Ministério Público e dos tribunais de contas e agentes da Administração Pública, servidores públicos, civis ou militares, ou a eles equiparados.
O sujeito passivo do abuso de autoridade não é só o cidadão, mas também a Administração Pública. O interesse em reprimir a conduta abusiva transcende a esfera individual do cidadão. Por isso, sugere-se a adoção da ação penal pública incondicionada, para a persecução dos crimes de abuso de autoridade, bem assim a admissão da ação privada subsidiária, nos termos do Código de Processo Penal.
Como efeito da condenação, sugere-se tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, fixando o Juiz na sentença o valor mínimo para a sua reparação; a perda do cargo, mandato ou função pública; inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública.
O Projeto prevê perda do cargo como efeitos da condenação, indenização civil, cabimento de pena restritiva de direitos, de acordo com o previsto no CP, e prevê como crimes as seguintes condutas:
(…) Art. 11. Constranger o preso ou detento, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe ter reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência, a:
I – exibir-se, ou ter seu corpo ou parte dele exibido, à curiosidade pública;
II – submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;
III –produzir prova contra si mesmo, ou contra terceiro, fora dos casos de tortura.
IV – participar de ato de divulgação de informações aos meios de comunicação social ou ser fotografado ou filmado com essa finalidade.
Pena – detenção, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.
Art. 12. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a depor sobre fatos que possam incriminá-lo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem constrange a depor, mediante violência ou grave ameaça, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo.
(…) Art. 19. Manter presos de ambos os sexos na mesma cela, ou num espaço de confinamento congênere:
Pena – detenção, de 1 (um) ano a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem mantém, na mesma cela ou num espaço
de confinamento congênere, criança ou adolescente junto com maiores de idade.
Art. 20. Invadir, entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências, sem autorização judicial e fora das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem, sob as mesmas circunstâncias do caput:
I – constrange alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear o acesso a sua casa ou dependências;
II – executa mandado de busca e apreensão em casa alheia ou suas dependências em afronta à decisão judicial que a autorizou.
§ 2º Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências a qualquer hora do dia ou da noite, em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
(…) Art. 32. Coibir ou por qualquer meio impedir, sem justa causa, a reunião, associação ou agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo.
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 6 (seis) meses, e multa. (…)
Os tipos em destaque merecem atenção especial.
O artigo 11 vem para punir a medieval apresentação de presos, sempre algemados e de cabeça baixa, para a imprensa. Não tem explicação esse circo midiático de exibição de presos para péssimos programas de televisão. A imprensa pode e deve cumprir com seu dever de informar crimes que repercutem na sociedade, sem essa desnecessária sessão de fotos de suspeitos algemados, que remete a um processo penal medieval, que exibia criminosos em praça pública, a fim de servirem de “exemplo” à sociedade:
[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; (…). (FOUCAULT, 1987, p. 08).
O artigo 12 vem para punir situações de confissão forçada, que não se encaixem nos casos típicos de tortura. No dia-a-dia abarrotado das delegacias, são frequentes os interrogatórios de “suspeitos” ou detidos sem acompanhamento de advogado ou Defensoria.
O artigo 19 chega um pouco tarde. Ganhou repercussão internacional o caso da adolescente de 15 anos que ficou presa numa cela com 30 homens no Pará, em 2007. A moça ficou 26 dias em detenção, sofrendo o abominável dentro da cela. A juíza responsável pela atrocidade recebeu a suave condenação de afastamento da magistratura por dois anos. A moça ficou traumatizada, obviamente, viciou-se em crack, enfim, teve a vida destruída por esse episódio (notícia aqui).
O artigo 20 vem para punir fatos corriqueiros no violento cotidiano de favelas e periferias, que frequentemente tem suas casas invadidas, sem qualquer ordem judicial, por policiais, nas operações de combate ao crime.
O artigo 32 vem para punir eventuais abusos, notadamente de policiais e da Guarda Municipal, nas cotidianas manifestações e protestos populares, frequentes em tempos de crise política.
As críticas ao projeto, até o presente momento, seguem a linha genérica, sem apontar eventuais inconstitucionalidades ou doutrinas equivocadas na criação dos novos tipos penais. O TJ/MS chegou a chamar o projeto de “Estatuto de bandido”, com direito à representação teatral em ato público. Segue a notícia:
Os manifestantes deixaram bem claro que não defendem a impunidade de magistrados ou de membros do Ministério Público. Pelo contrário, sempre se defendeu a punição de quem comete excessos, mas para isso existem leis e sistemas de correção como os do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e das Corregedorias para todas as carreiras envolvidas e afetadas diretamente pelo PL nº 7.596/2017. ‘Não precisamos de mais punição para as pessoas que combatem o crime. Precisamos de punição para os bandidos’, afirmou o juiz.
Em alto em bom som, o projeto de Lei foi classificado como o ‘estatuto do bandido’. Na prática, os magistrados interpretam que com a nova lei o bandido que não poderá mais ser algemando, não poderá ter sua prisão decretada, não poderá ser investigado nem ter seus bens bloqueados pela atuação dos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e das polícias investigativas.
Antes de encerrar o ato, diante de toda a imprensa, houve a encenação do que o PL representa para a sociedade: um integrante da PM algemou um membro do Ministério Público e entregou flores a um bandido. Toda a encenação foi narrada e o ato público foi encerrado com a leitura de uma Carta, assinada por todas as instituições que apoiam e participaram da manifestação.
O projeto toca em um calcanhar de Aquiles brasileiro, ao trazer punição efetiva e eficiente para abuso de autoridade em um país que adora autoritarismo, hierarquia e privilégios. Intelectuais como Freyre e Sérgio Buarque de Holanda deixaram obras expressivas destacando que anos de escravidão e Brasil colônia deixaram o povo brasileiro pouco afeito à democracia:
Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio da Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essas duas místicas – a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos. (FREYRE, 1987, pg. 52).
Até o momento, repito, não vimos uma crítica doutrinária e coerente a eventuais erros, inconstitucionalidades ou equívoco doutrinário na bem-vinda reformulação à antiga e ineficiente lei de abuso de autoridade. Somente ataques, sem o menor embasamento doutrinário ou sofisticação retórica. Vá lá ouvir do senso comum que “direitos humanos são coisas de bandidos” ou “bandido bom é bandido algemado”. Triste é ler tais generalizações imprecisas de membros do Judiciário e do MP.
Outro ponto estarrecedor foi uma crítica à possibilidade de criminalizar a violação de prerrogativas do advogado:
Outro ponto da proposta que vem preocupando integrantes do Judiciário é o que diz respeito à criminalização das violações e prerrogativas dos advogados, que na concepção de Esteves, podem se tornar mais “poderosos” com a medida. ‘Esse ponto equivale a dizer que o advogado tem prerrogativas processuais de estar com o juiz. É certo que há um desacerto nisso, um certo problema de comunicação, seja entre os advogados e delegados, ou entre advogados e promotores. Vamos ter bastantes problemas, como por exemplo, quando um advogado quiser ter acesso a um documento na delegacia que ainda precisa de análise para saber se é sigiloso ou não’, afirmou. ‘Também pode causar uma guerra desnecessária (entre advogados e Ministério Público ou advogados e juízes).
A opinião do doutor acima deixa bem claro o que já estava óbvio há tempos: NÃO HÁ PARIDADE DE ARMAS NO PROCESSO PENAL. O Doutor deixou bem claro, em sua entrevista, que o advogado está abaixo do Juiz e do MP, e mesmo do delegado de polícia, no processo penal. Inacreditável.
A Teoria dos Freios e Contrapesos, herança do Iluminismo europeu, defende que os poderes sejam divididos, de forma que um órgão fiscalize e equilibre o poder com outros:
É necessário, pois, que os Poderes se repartam por entre órgãos distintos, de sorte que possa cada um deles, sem usurpar as funções do outro, impedir que os demais abusem de suas funções. (CUNHA JÚNIOR, 2014, pgs. 424/425).
REFERÊNCIAS
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Editora JusPODIVM. 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. 1989.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 25. ed. Rio de Janeiro. Editora José Olympio, 1987.