O compartilhamento de informações tributárias para fins penais

O compartilhamento de dados e os desafios da proteção constitucional da intimidade e da vida privada na sociedade de informação é tema que muito tem ocupado os debates jurídicos, políticos e econômicos nos últimos dias. Veja-se, a propósito, o noticiado caso Facebook-Cambridge Analytica, que tomou grande repercussão a partir de notícia de que aquela rede social teria cedido à consultoria política os dados pessoais de mais de 87 milhões de usuários, utilizados ao fim de marketing político, influenciando a opinião pública em contextos eleitorais, a partir da análise de detalhados perfis psicológicos de eleitores. O caso trouxe grandes perdas de mercado ao Facebook, levou seu presidente-executivo a depor perante o Congresso norte-americano, colocou em xeque a própria legitimidade das eleições lá realizadas em 2017 e reabre uma discussão relevante ao Direito em tempos de tecnologia[1].

No âmbito do Direito Tributário, a temática também acarreta importantes consequências, pelo que se aproveita esse cenário vivenciado para lançar olhares a um tema em relação ao qual o Supremo Tribunal Federal recentemente reconheceu repercussão geral: o compartilhamento de dados obtidos pela administração tributária com o Ministério Público, a serem utilizados para fins penais sem autorização do Judiciário (RE 1.055.941, Tema 990).

No plano internacional, são diversos os tratados internacionais que buscam o fortalecimento de mecanismos de colaboração internacional e compartilhamento de informações fiscais e financeiras[2] — como o Fatca – Foreign Account Tax Compliance Act (promulgado pelo Decreto 8.506/2015) e a Convenção Multilateral sobre Assistência Administrativa Mútua em Assuntos Fiscais (ratificada pelo país em junho de 2016 junto à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE). A todo momento, são maiores e mais frequentes as informações obtidas, bem como aumentam o número de entidades, órgãos ou mesmo países com livre acesso a tais informações.

No âmbito jurisprudencial, o tema ainda não foi abordado com a devida especificidade pelo Supremo Tribunal Federal. É certo que, em fevereiro de 2016, a corte assentou a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/01, que permite o acesso pelas autoridades fiscais a dados bancários dos contribuintes para fins de apuração e constituição do crédito tributário, independentemente de prévia autorização judicial (RE 601.314, ADI 2.390, ADI 2.386 e ADI 2.397). Ali, afirmou-se que nessas situações não há propriamente uma quebra de sigilo, mas sua transferência, eis que se exige a manutenção do sigilo sobre os dados obtidos, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal (artigo 198 do Código Tributário Nacional). Entretanto, ainda que existam pontos em que a temática tenha sido levemente suscitada em obiter dictum por alguns votos, o tema relativo à utilização dos dados para os fins da persecução penal estatal não foi especificamente enfrentado.

No RE 1.055.941, cuida-se de recurso interposto pelo Ministério Público Federal contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região em que se reconheceu, em ação penal consubstanciada em imputação de crime contra a ordem tributária, a nulidade de provas obtidas a partir de dados obtidos pela Receita Federal e compartilhados com o Ministério Público Federal. Entendia-se, ali, que a materialidade da conduta imputada se demonstrava apenas por tais elementos probatórios, que seriam ilícitos sem a prévia autorização judicial para tanto.

No acórdão publicado em junho, em que reconhecida a repercussão geral da questão, o ministro relator veiculou preocupação com a fixação dos “limites objetivos que os órgãos administrativos de fiscalização fazendária deverão observar ao transferir automaticamente para o Ministério Público informações sobre movimentação bancária e fiscal dos contribuintes em geral, sem comprometer a higidez constitucional da intimidade e do sigilo de dados (art. 5º, incisos X e XII, da CF)”.

Na ocasião, pronunciou-se contrariamente o ministro Luiz Edson Fachin, não por entender irrelevante a controvérsia, mas por afirmar que esta inexistia, após o julgamento do RE 601.314 (em que afirmada a constitucionalidade dos indicados dispositivos da LC 105), que já abrangeria a solução do ponto: se “são lícitos os dados obtidos pela Receita Federal junto às instituições financeiras, sem prévia autorização judicial, […] tais provas podem ser utilizadas tanto para a constituição do crédito tributário como para comprovação de eventual responsabilidade criminal” (trechos de sua manifestação).

Nas turmas do Supremo, há casos em que o tema já foi pontualmente enfrentado. Na 1ª, invocando o fundamento de constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, já se assentou que se “entende ser possível a utilização de dados obtidos pela Secretaria da Receita Federal para fins de instrução penal” (RE 1.043.002-AgR, rel. min. Roberto Barroso, julgado em 1º/12/2017). Na 2ª, de forma mais sutil, já se reconheceu a ausência de ilegalidade flagrante em caso em que se utilizava, para fins de persecução penal, de informações colhidas sem autorização judicial no âmbito de processo administrativo fiscal (RHC 121.429, rel. min. Dias Toffoli, julgado em 19/4/2016).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, já se pode identificar precedentes mais sólidos sobre o tema, em que se afirma ser “possível a utilização de dados obtidos pela Secretaria da Receita Federal, em regular procedimento administrativo fiscal, para fins de instrução processual penal”, como recentemente afirmado pela 6ª Turma daquela corte (HC 422.473, rel. min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/3/2018). Agora, porém, o tema deve ser detidamente analisado pelo Plenário do STF.

Sobre o tema, relembra-se que o artigo 198 do CTN cuida das possibilidades e dos limites das informações relativas à situação econômica ou financeira, obtidas pelo exercício da função tributária, estabelecendo que não é vedada a representação fiscal para fins penais (artigo 198, parágrafo 3º, I). Dessa forma, a partir da premissa da constitucionalidade do acesso dos dados diretamente pela administração tributária, a posição que aqui se afirma é que, obtidas tais informações de modo legítimo e respeitados os limites materiais e procedimentais à sua aquisição (tais como a prévia instauração de processo administrativo; a pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado; a prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso; estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios), é possível a remessa desses dados ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal pública, para que se forme ou não sua opinio delicti.

Em verdade, mais do que uma possibilidade, tratar-se-ia de um dever do agente público que se depara com indícios de uma possível prática criminosa comunicar, resguardados os sigilos e as cautelas necessárias, a possível notitia criminis ao Ministério Público, a quem caberá analisar a presença, ou não, de justa causa para o oferecimento da ação penal, a partir da reunião de lastro probatório mínimo que indique a materialidade e indícios de autoria da infração penal.

De outro lado, caso a iniciativa para acesso de tais dados surja do Ministério Público, não caberá a tal entidade requisitá-los diretamente às entidades financeiras ou à administração tributária. Nesses casos, será necessária a prévia autorização judicial. É que o artigo 6º da Lei Complementar 105/2001 apenas assegura tal prerrogativa às “autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Ademais, o artigo 198, parágrafo 1º, do CTN excetua do dever de não divulgação de informações pela Fazenda Pública as requisições provenientes “de autoridade judiciária no interesse da justiça”. Dessa forma, tais dados privados e particulares, se em sua própria essência já não remanesce um interesse público intrínseco (como nos casos em que se diga respeito à aplicação de recursos públicos), apenas mediante prévia autorização judicial é que se poderia franquear ao Ministério Público o acesso a tais informações.

Chega-se, assim, a uma interpretação intermediária que se entende ser a mais consentânea com o texto constitucional, que, sem descuidar das garantias individuais, também resguarda a tutela da eficiência do exercício do jus puniendi do Estado e da fiscalização tributária. Sendo constitucional a transferência de dados à administração tributária, é também possível o compartilhamento destas informações com o Ministério Público para fins de ajuizamento de ação penal, quando haja indícios de prática de infração penal. De modo diverso, o Ministério Público por si só e de forma unilateral não pode obter dados protegidos pela garantia constitucional, eis que não há previsão legal específica que lhe autorize, pelo que se impõe a prévia autorização judicial.

A ver como decidirá o Supremo Tribunal Federal.


[1] ARABI, Abhner Youssif Mota Arabi. Direito e tecnologia: relação cada vez mais necessária. In: JOTA, publicado em 04/01/2017. Disponível em http://jota.info/artigos/direito-e-tecnologia-relacao-cada-vez-mais-necessaria-04012017.
[2] ARABI, Abhner Youssif Mota Arabi. Onda Punitivista e a Supercriminalização do Combate à Corrupção. In: Revista Jurídica Consulex, v. XX, p. 34-36, 2016.

Por Abhner Youssif Mota Arabi

Abhner Youssif Mota Arabi é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal e professor.

Revista Consultor Jurídico, 4 de agosto de 2018.

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