Em muitos aspectos, o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert) se distancia dos últimos programas de parcelamento de débitos tributários federais, especialmente pelos descontos menos atrativos, condições de permanência e causas de exclusão. Nada que fuja, à primeira vista, da competência outorgada ao legislador ordinário pelo artigo 155-A do Código Tributário Nacional (CTN), de tal modo que o parcelamento será concedido na forma e condição estabelecidas em lei específica.
Contudo, surge instigante a verificação da validade da vedação à inclusão de dívidas decorrentes de lançamento de ofício cuja multa de ofício qualificada – por dolo, fraude ou sonegação – tenha sido mantida definitivamente na esfera administrativa. Estaria tal vedação alinhada ao ordenamento jurídico e, mais especificamente, às regras do CTN (artigo 154, parágrafo único, e artigo 155-A, parágrafo 2º) que afastam a concessão de moratória e parcelamento no caso de dolo, fraude ou simulação?
Parece-nos que uma adequada interpretação da restrição permite concluir pela sua inaplicabilidade na hipótese de julgamento por voto de qualidade (desempate).
O critério eleito na medida provisória, no caso de voto de qualidade, representa diferenciação que viola o ordenamento jurídico
À primeira vista, parece lógica e plenamente justificada. A retórica do argumento é cativante: retira-se, afinal, o incentivo a maus pagadores ou “sonegadores”, induzidos que são – dizem – a condutas ilícitas em razão de reiterados programas de parcelamento. Atende, portanto, aos anseios da Receita Federal do Brasil, notoriamente contra parcelamentos. Contudo, cabem algumas observações.
Dados divulgados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), referentes a 2016, indicam que quase 70% dos casos julgados por voto de qualidade (desempate) foram a favor da Fazenda Nacional, sendo que, de 24 temas analisados e decididos por esta sistemática na Câmara Superior, 23 também foram desfavoráveis aos contribuintes, também por voto de qualidade.
Temas controvertidos são marcados por profundas alterações na jurisprudência dominante. Determinadas operações, antes chanceladas pelo Carf, são mantidas com acusação de fraude, não sendo raros os casos de restabelecimento da multa de ofício qualificada pela Câmara Superior. Com isso, queremos dizer que merecem temperamentos as declarações de autoridades públicas que, em tom maniqueísta, tentam estabelecer uma segregação entre “bons” e “maus”, adotando a multa qualificada como parâmetro de comparação.
É justamente neste contexto que surge a nossa análise. Conquanto elementar, não é demais relembrar que a igualdade foi eleita como valor/princípio/garantia fundamental pelo legislador constituinte. Dada a sua relevância insuperável, a Constituição Federal foi mais contundente em sua normatização no trato da matéria tributária, vedando que os entes políticos instituam tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (artigo 150, II, da Constituição Federal).
A igualdade pressupõe a comparação entre dois ou mais sujeitos ou objetos, através de uma medida de comparação cujo elemento indicativo guarde relação de pertinência e de conjugação com a finalidade da lei, isto é, deve encontrar amparo em fundamento estatístico (consistência fática) e ser o melhor elemento indicativo dentre os disponíveis para escolha do legislador.
No Pert, devemos nos perguntar, afinal, se a medida de comparação eleita e seu respectivo elemento indicativo (atributo de sonegação/fraude e multa de ofício qualificada mantida no Carf, respectivamente) guardam vinculação com a finalidade da legislação: diferenciar débitos decorrentes de fraude/sonegação daqueles oriundos de mero inadimplemento. A conclusão também valerá, a nosso ver, para se determinar se a vedação do CTN se aplicaria ao caso.
Se a finalidade da medida provisória e do CTN (razão da desigualdade) for diferenciar débitos oriundos de sonegação ou fraude de meros inadimplentes para fins de concessão de parcelamento, a medida de comparação deve ser factível, ou seja, tal crime deve estar configurado.
Não há relação estatística comprovada entre manutenção de auto de infração com multa qualificada e a configuração do crime de fraude ou sonegação. Somente a partir do julgamento administrativo é que poderá ser investigado eventual crime contra a ordem tributária. No caso de voto de qualidade, a presunção do ilício é completamente afastada e não deve prevalecer a restrição.
Na Constituição Federal, vigora a presunção de inocência (artigo 5º, LVII); no âmbito processual penal, o princípio in dubio pro reo; e no âmbito tributário, o princípio in dubio pro contribuinte (artigo 112 do CTN). Havendo dúvida, não há dissenso quanto, ao menos, a necessária desqualificação da multa de ofício. Cai por terra o “caso de dolo, fraude ou simulação” que impediria a concessão do parcelamento (no CTN e na legislação do Pert).
Não há o pressuposto autorizador da restrição prevista no CTN e, via de consequência, o critério eleito na medida provisória, no caso de voto de qualidade, representa diferenciação que, antes de prestigiar o princípio da igualdade, revela-se mera arbitrariedade que viola o ordenamento jurídico.
Diante desta situação, é válida a adoção de medida judicial que contextualize o pressuposto da norma que veicula a respectiva vedação no caso de voto de qualidade, interpretando o CTN e a medida provisória conforme a Constituição Federal e pelos critérios sistemático e teleológico restritivo (exclusão de situações que indiscutivelmente estão fora de sua abrangência pelo contexto e finalidade pressupostos da norma), de modo a garantir a inclusão dos débitos no Pert. Não haverá atuação como legislador positivo pelo Poder Judiciário, que tão somente confirmará a correta interpretação da legislação sob a ótica da igualdade.
Fonte : Valor-07-08-2017