Os reflexos da repatriação no crime de lavagem

Não há nenhuma dúvida de que o objetivo de arrecadação é uma das principais razões pelas quais os países lançam programas de regularização de ativos. Se forem bem formulados, poderão estimular o compliance fiscal. Ao mesmo tempo, contudo, trazem riscos consideráveis de lavagem de dinheiro, quando incluem a possibilidade de repatriação dos valores e algum tipo de anistia penal.

A Lei nº 13.254, deste ano, anistia o crime de lavagem de dinheiro em relação a algumas infrações penais antecedentes. É um eufemismo falar em valores lícitos, já que a ilicitude estará sempre presente, inclusive nos casos em que os bens e valores tiverem sido auferidos em atividade econômica permitida ou não proibida. Se os valores não foram declarados à Receita Federal ou ao Banco Central, nos casos em deveriam ter sido declarados, haverá, no mínimo, crime contra a ordem tributária ou uma das modalidades do delito previsto no artigo 22 da Lei nº 7.492, de 1986.

A Receita Federal não está inovando ao exigir que o tributo e a multa sejam calculados e pagos sobre o valor total havido (e eventualmente transferido ou consumido) antes de 31 de dezembro de 2014. A própria lei, em mais de uma ocasião, expressa, com muita clareza, que o regime se aplica a todos os recursos, bens ou direitos, incluindo movimentações anteriormente existentes.

Impedir ou cercear investigação criminal sobre a origem dos valores é estender o regime além do limite aceitável

Se assim não fosse, a anistia penal seria incapaz de alcançar os valores sobre os quais não tivesse sido recolhido o tributo e a multa. Ou seja, deixar fora da declaração valores que tenham sido de titularidade do contribuinte num prazo de até 16 anos contados da data da adesão ao programa trariam o risco de responsabilização pela prática do crime de lavagem de dinheiro.

A lei diz que as informações obtidas com a declaração voluntária não podem ser as únicas evidências a fundamentar uma investigação criminal, mas não impede, como não poderia mesmo fazer, que as informações sejam obtidas por outras fontes. O Grupo de Ação Financeira (Gafi) monitora os programas de repatriação de ativos a fim de que não se prestem a uma “lavagem de dinheiro oficial”. De acordo com o Gafi, os programas não podem ser utilizados para oferecer a imunidade penal absoluta em relação aos ativos repatriados ou declarados, nem é possível isentá-los dos controles de prevenção da lavagem de dinheiro ou de investigações criminais que visem apurar outros delitos. No recente exame que fez do caso brasileiro (na reunião plenária de junho passado, realizada na Coreia do Sul), o Gafi afirmou que a Lei nº 13.254/16 parece atender aos quatro princípios básicos que regem esses programas.

Na prática, essas outras fontes de informação poderão ser, por exemplo, o acordo de compartilhamento de dados fiscais com os Estados Unidos já em vigor (Fatca) ou a Convenção Multilateral sobre Assistência Administrativa Mútua em Assuntos Fiscais (OCDE), promulgada em 29 de agosto pelo Decreto nº 8.842, e que entra em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, em 1º de outubro deste ano. Poderão, ainda, surgir informações em decorrência da crescente cooperação jurídica internacional ou de elementos colhidos nos acordos de colaboração premiada, cada vez mais utilizados no bojo de investigações criminais.

É preciso ter em conta que a lei de lavagem de dinheiro, em sua formulação atual, se aplica às condutas de ocultação ou dissimulação que se prolongaram no tempo em razão da vontade do autor. Manter recursos não declarados no exterior caracteriza ocultação. Se esses ativos forem provenientes de delitos outros que não os expressamente anistiados pela lei, ainda que à época não fossem antecedentes de lavagem de dinheiro, sua ocultação poderá caracterizar crime.

Além disso, a interpretação do conceito de proveniência ilícita, para os efeitos do crime de lavagem de dinheiro, deve considerar a acepção jurídica e econômica, e não simplesmente causal ou naturalística.

Assim, para evitar a responsabilização criminal por lavagem de dinheiro será necessário, em princípio: a) que os bens, direitos ou valores voluntariamente declarados (remetidos, mantidos no exterior, ou repatriados) sejam provenientes, direta ou indiretamente, somente das infrações penais arroladas no parágrafo 1º, incisos I a VI, do artigo 5º da Lei nº 13.254/16; b) atendida a primeira condição (não serem provenientes de outros delitos) que o pagamento do tributo e da multa seja feito sobre o total de bens, direitos ou valores que tenham sido ou ainda sejam de pessoas físicas (como beneficiários finais) no período de 16 anos anteriores à data da adesão ao regime.

Modificar a lei para aceitar a extinção da punibilidade a respeito de valores sobre os quais não houve declaração nem pagamento do tributo e da multa; aceitar a regularização de bens e valores obtidos com a prática de outros crimes graves (como a corrupção, o tráfico de drogas ou de pessoas); impedir que as instituições financeiras cumpram os deveres de compliance, reportando operações suspeitas de seus clientes, na existência de outros elementos que não os declarados pelo contribuinte; ou impedir ou cercear, de qualquer modo, a investigação criminal sobre a verdadeira origem ou titularidade dos bens ou valores é estender o regime de regularização além do limite aceitável.

Carla Veríssimo De Carli é procuradora regional da República na 4ª Região, mestre em ciências criminais pela PUC-RS, especialista em crime organizado, corrupção e terrorismo pela USAL, doutora em direito pela UFRGS e doutora do Programa Estado de Derecho y Gobernanza Global pela USAL (em cotutela)

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Por Carla Veríssimo De Carli

Fonte : Valor -12/09/2016.

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