Tem-se veiculado na mídia especializada a notícia de que alguns juízes federais reverteram, em favor do contribuinte, decisões administrativas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais nas quais se decidiu pelo voto de qualidade do presidente da turma. Entenderam haver dúvida razoável a ensejar a aplicação do artigo 112 do Código Tributário Nacional, que consagra o conhecido princípio da retroatividade benigna.
A finalidade deste artigo é demonstrar o equívoco dessas decisões judiciais, além de lembrar que o voto de qualidade guarda total coerência com a atual composição paritária do Carf. Afinal, cabe ressaltar, embora seja do conhecimento de todos, a decisão administrativa irreformável a favor do contribuinte extingue definitivamente o crédito tributário, em conformidade com o que dispõe o artigo 156, IX, do CTN, salvo, e é o que se constatou na operação zelotes, a vontade do colegiado estiver comprovadamente viciada. O mesmo não ocorre com a decisão definitiva que mantém o crédito tributário lançado, já que a porta do Judiciário estará sempre aberta para o contribuinte contrapor-se ao interesse do Fisco.
A propósito da operação zelotes, os fatos nela comprovados e a recente prisão em flagrante de um integrante do Carf que lá representava os interesses dos contribuintes, por indicação de conhecida Confederação Nacional, só comprova o que talvez a ditadura do politicamente correto venha há muito impedindo de dizer-se: o atual modelo de composição do Carf encontra-se exaurido. O vínculo que liga os conselheiros assim indicados com a Administração Pública é tênue demais para continuar como está. A nosso sentir, reclama urgente revisão.
Mas retornemos ao voto de qualidade.
Sabe-se que, em matéria de penalidades, o Direito Tributário sofre o influxo de conhecido princípio de Direito Penal, dispondo que, em vista do bem jurídico tutelado e dado o princípio da inocência, quando há dúvida sobre a autoria do delito, em face do conjunto probatório carreado aos autos, deve-se decidir em favor do réu. Na seara tributária, o correspondente ao artigo 386 do Código de Processo Penal é o artigo 112 do CTN, em cujo inciso II – o fundamento jurídico amiúde utilizado para reverter acórdãos decididos pelo voto de qualidade –, estabelece que a “lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos”.
A primeira e mais importante observação que se pode fazer é que este dispositivo só se aplica à lei que define infrações ou comina penalidades. Não serve, portanto, para definir a incidência ou a não incidência de um tributo sobre certo fato jurídico, ou para estabelecer, entre duas possibilidades, a aplicação de uma alíquota menor (por exemplo, para decidir qual a correta classificação fiscal de um produto), ou para firmar a base de cálculo de um tributo etc.
A segunda observação – e esta exsurge evidente da simples leitura do inciso II do artigo 112 do CTN – é que este dispositivo não cuida da identificação ou do alcance da lei, mas da valoração dos fatos, ou, como bem lembra Luciano Amaro, da interpretação dos fatos (“…dúvida quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos”). Lembra o autor que “discutir se o fato ‘X’ se enquadra ou não na lei, ou se ele se enquadra na lei ‘A’ ou na lei ‘B’, (…) diz respeito ao exame do fato e das circunstâncias em que ele teria ocorrido, e não ao exame da lei. A questão atém-se à subsunção, mas a dúvida que se põe não é sobre a lei, e sim sobre os fatos” [1].
A terceira e última observação, não menos importante que as demais, é que o princípio da retroatividade benigna só pode ser utilizado quando houver dúvida. Inexistindo ela, não há que se aplicar o artigo 112 do CTN [2]. Assim, se uma lei prevê, por exemplo, que a saída de certo produto do estabelecimento industrial, com uma classificação fiscal qualquer na NCM, passa a ter alíquota zero do IPI, um outro produto, ainda que se apresente muito semelhante e que possua classificação fiscal muito próxima na TIPI, não será atingido pelo benefício fiscal. As dúvidas, antecipamos, devem ser dirimidas pelos métodos conhecidos de interpretação (com suas particularidades para cada caso), mas não pela aplicação do artigo 112 do CTN.
À primeira vista, tais observações podem até parecer desnecessárias, mas, como se verá, não são.
Um dos juízes federais, ao deferir tutela de urgência para suspender a exigibilidade do crédito tributário lançado, afirmou que haveria dúvida do Carf a viabilizar a aplicação do artigo 112 do CTN, porque a decisão do colegiado se deu pelo voto de qualidade. Sustentou que haveria “verdadeira dúvida quanto aos fatos em discussão e seus efeitos legais no tocante à inclusão na base de cálculo das exações do PIS e Cofins no tocante aos valores transferidos a terceiros” [3]. Mais à frente disse que:
“ao verificar o empate, a turma deveria proclamar o resultado do julgamento em favor do contribuinte. Segundo a melhor doutrina e por exigência do princípio da legalidade e da justiça tributária, o ônus da prova da ocorrência do fato jurídico tributário em sua inteireza é do fisco, cabendo ao contribuinte, na busca da desconstituição da exigência, provar os fatos extintivos, impeditivos ou modificativos do direito à imposição tributária. Por outro lado, a interpretação da hipótese de incidência deve dar-se à luz do fato e não apenas abstratamente no plano normativo. Essa é a atividade do lançador. Verificar a certeza da ocorrência do fato, em todos os elementos da hipótese, sob pena de não incidência da norma e da não instauração da relação jurídica obrigacional” (g.n.)
Com a devida vênia, está equivocado.
Já demonstramos, o princípio da retroatividade benigna não serve para desempatar, em favor do contribuinte, o julgamento decidido pelo voto de qualidade, cuja previsão, aliás, encontra-se no Regimento do Carf (RICarf)por delegação expressa do legislador ordinário [4]. Ademais, segundo registrou o próprio magistrado, haveria, no caso, dúvida sobre “a interpretação da hipótese de incidência”, ou, como diz noutra passagem, “inclusão na base de cálculo das exações do PIS e da Cofins, matérias que, como visto, estão a léguas de distância do âmbito de aplicação deste princípio (repise-se uma vez mais: ele só se aplica à lei que define infrações ou comina penalidades e destina-se à interpretação dos fatos, não do direito).
Uma outra decisão judicial, esta também proferida em sede de cognição sumária, ao interpretar o artigo 54 do RICarf [5] consignou que “…a construção da ‘maioria’ necessária à proclamação do resultado pela manutenção da multa deu-se em decorrência de uma indevida interpretação, por parte do Carf, do que seria o voto de qualidade, conferido aos presidentes das turmas” [6]. Para a magistrada, o presidente da Turma de Julgamento equivocadamente entendeu que lhe caberia “uma espécie de voto dúplice, que conferiria (…) o poder de, após votar e, restado empatado, votar novamente, promovendo o desempate. Expôs que tal interpretação não poderia ser mantida, por violação aos “mais basilares princípios democráticos de direito”.
Ora, no voto dúplice (que tem previsão legal!), é justo o que ocorre: cabe ao presidente da turma o voto ordinário. Havendo empate – o que não significa tenha havido dúvida, mas apenas divisão entre os integrantes da turma – caberá a ele também o voto de qualidade. É o que expressamente estabelece a norma.
A magistrada cometeu um outro equívoco, desta feita, acreditamos, por desconhecimento de como ocorrem os julgamentos no Carf: enfatizou ter havido, no caso sob seu exame, a ausência de um conselheiro, de modo que nada obstava fosse o julgamento adiado para colher o voto deste conselheiro ausente, ou que a questão fosse definida com apenas os cinco conselheiros presentes, abstendo-se o presidente de votar. Sabe-se, todavia, que, no julgamento do caso apreciado pela magistrada, o conselheiro ausente foi substituído por um conselheiro-suplente, como restou consignado no próprio acórdão[7], de modo que se estavam presentes, na sessão de julgamento, seis conselheiros, à época a composição máxima da Turma.
Felizmente, a despeito desses poucos casos, o Poder Judiciário vem reconhecendo a legalidade do voto de qualidade, afastando a pretensão de reverter, em favor do administrado, as decisões assim proferidas por colegiados integrantes da Administração Pública, inclusive o próprio Carf. Confira-se:
“CARF. PROCESSO DE EXIGÊNCIA DE TRIBUTOS. JULGAMENTO. VOTO DE QUALIDADE. 1. O voto de qualidade (de atribuição do Presidente do órgão julgador, que será conselheiro representante da Fazenda Nacional), previsto para as decisões do CARF (art. 54 do respectivo Regimento Interno), não ofende o devido processo legal (mormente no que se refere à imparcialidade das decisões). 2. O membro do CARF, seja ele representante da Fazenda Nacional ou dos contribuintes, tem como função o julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Receita Federal com base no princípio da legalidade, não tendo ele que adotar posição vinculada a sua origem. (TRF/4ª Região, rel. Des. Rômulo Pizzolatti, AC 5073051-59.2014.404.7100/RS, D.E. 18/11/2015) (g.n.)”
“ADMINISTRATIVO. CADE. QUESTÕES DE ORDEM. CONVOCAÇÃO PARA COMPLETAR QUORUM DA TURMA JULGADORA. REGULARIDADE. APELAÇÃO PAUTADA ANTES DO AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO DO MESMO PROCESSO. ANSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE. CONTEÚDO DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA AGRAVADA ABSORVIDA PELO JULGAMENTO DO MÉRITO DA CAUSA. JULGAMENTO DE ATOS DE CONCENTRAÇÃO. VOTO DE QUALIDADE DO PRESIDENTE DE FORMA CUMULATIVA PARA ALCANÇAR O QUORUM DE MAIORIA ABSOLUTA. POSSIBILIDADE. LEI 8.884 /94, ART. 8º, II. 1. Regularidade na convocação de Membro desta Corte para compor quorum de Turma nos termos do art. 112 c/c o inciso I do art. 113 do RITFR – 1ª Região. 2. A antecipação de tutela concedida em 1ª instância e mantida por este Tribunal em sede de agravo de instrumento e posteriormente denegada na sentença de mérito em 1ª instância confunde-se com o próprio mérito da causa e, por isso, a precedência do julgamento da apelação em relação ao agravo não causa qualquer prejudicialidade. 3. O voto regular e o de qualidade não se confundem e podem ser cumulados no mesmo julgamento. 4. A votação se deu nos termos da Lei 8.884 /1994, art. 8º, II, uma vez que não tem a presidência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE faculdade, mas, obrigação, decorrente da atividade pública, cujo exercício é regulado pelo direito público. 5. Questões de ordem rejeitadas. 6. Apelação a que se nega provimento. (TRF/1ª Região, rel. Des. Souza Prudente, AMS 32899/DF, DJ 30/04/2007)”
Ao encerrar, entendemos oportuno fazer uma última e breve observação: se, com o ajuizamento de tais ações, os contribuintes estão pretendendo perder importante foro para que sejam discutidos, por pessoas com relativa experiência na matéria, seus litígios tributários com a União, penso estarem trilhando o caminho correto. Se esta não for a intenção, podem estar dando um tiro no pé.
[1] AMARO, Luciano, Direito tributário brasileiro, 13ª ed.: São Paulo, Saraiva, 2007, pp. 222/223.
[2] STJ, Ag Rg no REsp 1.294.297/PR, DJe 11/03/2015.
[3] Processo 0041376-24.2016.4.01.3400 (2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal)
[4] Decreto 70.235/72: artigo 37. O julgamento no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais far-se-á conforme dispuser o regimento interno. (Redação dada pela Lei 11.941, de 2009).
[5] Portaria MF 343, de 09/06/2015: Artigo 54. As turmas só deliberarão quando presente a maioria de seus membros, e suas deliberações serão tomadas por maioria simples, cabendo ao presidente, além do voto ordinário, o de qualidade. (g.n.)
[6] Processo 105300-81.216.4.01.3400 (13ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal).
[7] Acórdão Carf/1ª Seção/4º Câmara/2ª Turma Ordinária 1402-001.823, de 24/09/2014.
Por Por Charles Mayer de Castro Souza.
Charles Mayer de Castro Souza é Auditor-Fiscal da Receita Federal, Conselheiro Titular da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda.
Fonte:Revista Consultor Jurídico