Tributação de artistas e desportistas

Desde o fim de 2014 a Receita Federal retomou a fiscalização sobre os pagamentos feitos a título de direito de imagem a artistas e desportistas. Aliás, não só a Receita Federal. O Ministério Público também anda utilizando sua “competência fiscalizatória” para questionar a prática elisiva conhecida como “pjotização”, aproveitando os holofotes do caso do jogador Neymar Jr.

De fato, essas fiscalizações não objetivam a cobrança de tributos não recolhidos: elas têm como foco retomar a antiga discussão sobre a constituição de pessoas jurídicas para a prestação de serviços personalíssimos.

A tributação brasileira possui muitas distorções ou, no mínimo, algumas opções de política fiscal sem sentido (resultantes da falta de um plano global para o desenvolvimento nacional): regressividade, cumulatividade, anômalas segregações de tributos sobre o valor agregado, além de muita complexidade legislativa. O que dizer, porém, da discrepância entre a carga tributária das pessoas físicas e a de algumas pessoas jurídicas prestadoras de serviços? Teria essa discrepância alguma razão ou seria mais um exemplo de distorção ou política fiscal sem sentido?

As fiscalizações têm como foco retomar a discussão sobre a constituição de pessoas jurídicas para prestar serviços personalíssimo

Uma pessoa jurídica constituída para prestar um serviço, e que seja optante pelo lucro presumido, está obrigada ao pagamento de cerca de 15% de tributos sobre a renda e a receita. Essa base tributada (renda / receita), ao ser transferida para os sócios, não sofre nova tributação, já que a distribuição de dividendos está isenta desde 1996.

Caso essa mesma renda/receita seja recebida por uma pessoa física como salário ou contraprestação de serviço, paga-­se até 27,5% de imposto. Essa diferença pode fazer algum sentido se pensarmos que pessoas jurídicas são constituídas para movimentar a economia e gerar mais emprego, ou seja, resultam do sempre incentivado empreendedorismo… Ou não?

Pessoas jurídicas são ficções do direito e servem para separar o patrimônio do negócio e dos sócios para diversos fins (mecanismo jurídico que, a propósito, também serve para incentivar o empreendedorismo). Para serem constituídas precisam apenas de no mínimo dois sócios, alguns documentos e um bocado de burocracia, certo? Há controvérsias. Poderia ser chamada de pessoa jurídica a sociedade firmada entre dois irmãos, um deles com 99,99% das quotas e o outro com 0,01%, sendo que este último não possui qualquer expertise ou exerce qualquer função relacionada ao objeto social estipulado?

Essa controvérsia, largamente ignorada no debate do direito comercial, ganhou mesmo importância no direito tributário (nada como mexer com o bolso, não é mesmo?). A possibilidade de pagar menos tributos aliada à relativa simplicidade para abertura de pessoas jurídicas tornou­-se prática comum (e racional, afinal) em quase todos os ramos prestadores de serviços, embora os artistas e desportistas tenham ganhado as páginas dos jornais após algumas autuações milionárias.

A fiscalização da Receita Federal sobre essa prática não é de fato inaugural. Desde aproximadamente o ano de 2000, autos de infração expressivos foram lavrados para a desconsideração das pessoas jurídicas prestadoras dos serviços chamados “personalíssimos” (que só poderiam ser prestado pela pessoa de um dos sócios), objetivando a cobrança do Imposto de Renda Pessoa Física de até 27,5%.

Houve uma penca de argumentos jurídicos (mal) desenvolvidos para essa empreitada (mesmo quando os casos seguiam para o Carf), mas o que explicava mesmo essa conduta era o ainda à época velado combate aos planejamentos tributários. Sob o multisignificante manto da justiça fiscal, a desorientada fiscalização do que ficou conhecido como ‘pejotização’ fez algum estrago até o período de 2005, quando foi publicada a Lei nº 11.196.

O art. 129 da referida lei prescreve que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, científicos, artísticos e culturais, inclusive em caráter personalíssimo, deveria se sujeitar tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, ressalvada a desconsideração da personalidade jurídica decretada pelo Poder Judiciário.

A partir deste comando o Estado brasileiro deu um sinal muito claro de que o empreendedorismo não é uma explicação possível para a diferença entre a carga tributária da pessoa jurídica e da pessoa física. Ao contrário, essa regra incentiva a constituição de pessoas jurídicas em que apenas um dos sócios pode ser o prestador de serviço (ou seja, não há propriamente a criação de uma empresa, no sentido de atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens e serviços), já que, assim, paga-­se menos tributos.

Goste-­se ou não, esse é o recado transmitido muito claramente pelo art. 129 da Lei nº 11.196. Independentemente do maniqueísmo instalado entre Fisco e contribuintes, da fúria arrecadatória do falido Estado brasileiro ou dos movimentos pela justiça fiscal, desde 2005 não é mais possível juridicamente desconsiderar­-se a forma de tributação das pessoas jurídicas prestadoras de serviços personalíssimos.

É possível que outro recado seja dado à sociedade após a eventual conversão em lei da Medida Provisória nº 690, que aumenta a tributação dessas pessoas jurídicas para muito além dos 27,5% aplicável às pessoas físicas. Segundo noticiado pela imprensa, o governo espera arrecadar até R$ 615 milhões em 2016 com essa nova forma de tributação. Contudo, até a concretização desta medida, não se pode admitir elevação de tributação por meio de autos de infração, como indica ser a intenção das autoridades fiscais nos casos dos artistas e desportistas recentemente fiscalizados.

Por Vanessa Rahal Canado.

Vanessa Rahal Canado é sócia da área tributária do CSMV Advogados, mestre e doutora em direito tributário pela PUC­SP e professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Fonte: Valor Econômico

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