Decisões políticas abalam a confiança do contribuinte

Historicamente, a cobrança de tributos sempre foi uma ferramenta eficaz para fortalecer exércitos e efetivar novas conquistas. Como se sabe, há muitos personagens e lendas que nascem dessa tensa relação. Conta-se que, na Inglaterra, nos idos de 1.200, um rei chamado Ricardo Coração De Leão deixou seu povo sendo governado por um parente chamado João Sem Terra, a quem era incumbido de comandar seus exércitos nas cruzadas.

Todavia, enquanto Ricardo viajava em guerra, João Sem Terra aproveitou para formar seu próprio exército, cobrando duas vezes mais tributos. Uma parte do dinheiro ia para sustentar as cruzadas e outra para custear o novo exército de João Sem Terra, que pretendia, com isso, não devolver o trono ao atual rei. E, para o povo, por certo, nada. Da revolta popular contra tanto abuso surgiu a lenda de Robin Hood, um herói que roubava dos ricos para dar aos pobres, distribuindo o dinheiro que a nobreza acumulava em seus cofres.

Nos dias atuais, o ímpeto das Fazendas Públicas e a sanha arrecadatória dos seus administradores devem – ou ao menos deveriam – ter como contrapeso a observância do princípio da confiança legítima em matéria tributária, o qual, nas palavras do professor Heleno Torres, “pode evidenciar-se pela prática de interpretação ou aplicação da lei pelo mesmo ou por vários contribuintes e que gera a expectativa de confiança em um agir legítimo e conforme a legalidade”.

Ou seja, é com base nessa – infelizmente combalida – confiança legítima que os contribuintes depositam nas Administrações Fazendárias, de um modo geral, a esperança de que seus tão suados recursos tenham, pra dizer o mínimo, a destinação que lhes atenda em suas mais comezinhas necessidades.

Ademais, esse mesmo primado, quer nos parecer, é o que também norteia a expectativa de que os órgãos estatais – diga-se, custeados pelos próprios contribuintes – possam funcionar com o mínimo de segurança jurídica, mirando uma solução (também minimamente estável) das controvérsias entre as Administrações Fazendárias e os administrados.

Nas contendas administrativo-fiscais travadas entre contribuintes e fazenda pública nas três esferas de governo, invariavelmente a grande oportunidade do administrado em discutir tecnicamente as questões mais intrincadas está, justamente, no âmbito das segundas instâncias, dos Conselhos de Contribuintes ou Tribunais Administrativos, órgãos pertencentes ao Poder Executivo e, em âmbito estadual e municipal, geralmente vinculados às Secretarias de Fazenda. Em quase sua totalidade, são órgãos colegiados e marcados pela paridade, de modo que os setores público e privado têm igual número de assentos.

Naturalmente, o que se deve esperar, em relação às decisões emanadas por esses conselhos, são, pra dizer o mínimo, estabilidade e definitividade. Todavia, lastimavelmente, o hiato que separa o ideal do cotidiano é abissal.

A Lei Complementar Estadual 1 de 2 de agosto de 1972, que disciplina as regras sobre o julgamento de Processo Administrativo Fiscal em segunda instância no Paraná, estabelece em seu artigo 25:

O recurso à última instância, de decisões não unânimes e contrárias à Fazenda Pública Estadual, cabe ao representante da Fazenda Pública Estadual, no prazo de 15 (quinze) dias contados da data de publicação do acórdão no Diário Oficial do Estado.

Pelo mencionado dispositivo, observa-se de plano que, sendo a decisão do Pleno contrária à Fazenda Pública – mas não unânime – cabe à Representação da Fazenda a opção de recorrer da decisão do Colegiado ao Secretário da Fazenda, como última instância administrativa.

O Decreto 12.315 (D.O.E. nº 9.313 de 16/10/2014) estabeleceu uma limitação de alçada para interposição do Recurso Hierárquico de 1.000 UPF/PR (Unidade Padrão Fiscal do Estado do Paraná), R$ 79.900 em junho de 2015. Porém, como as autuações pelo Fisco Paranaense, via de regra, são de grande monta, esse dispositivo pouco fez diferença.

Com efeito, os julgamentos dos Processos Administrativos Fiscais pelo Conselho de Contribuintes do Paraná são analisados e apreciados em duas oportunidades, quais sejam (i) por uma das quatro Câmaras e (ii) ao final pelo Pleno, que é composto pelos julgadores das Câmaras.

Toda a composição do Colegiado, tanto cameral como plenária, é paritária, ou seja, os vogais atuam como julgadores representantes do fisco e dos contribuintes, estes indicados em lista tríplice pelas entidades de classe estaduais do Paraná, a saber: Federação do Comércio (Fecomércio), Federação das Empresas de Transporte de Cargas (Fetranspar), Federação das Associações Comerciais (Faciap), Federação das Indústrias (Fiep), Federação da Agricultura (Faep) e Organização das Cooperativas (Ocepar).

Os recursos à terceira instância ou hierárquicos, interpostos pela Representação da Fazenda, têm por finalidade a reforma total ou parcial do julgado do Pleno, caso tenha este concluído, por maioria ou desempate, pela improcedência da medida fiscal lavrada contra o Contribuinte. No entanto, tais recursos são apreciados pelo senhor Secretário da Fazenda, após parecer elaborado na maioria das vezes por auditor fiscal designado para esse fim.

Observe-se que existem situações em que a Câmara julgadora reconheceu que o contribuinte tinha razão, opinando pelo cancelamento da exigência fiscal. Na sequência, recorre a parte vencida, no caso a Fazenda Pública, ao Pleno e este apreciando a matéria julgada na Câmara mantém o entendimento Cameral.

Ou seja, reconheceu-se, em duas oportunidades, que a medida fiscal foi totalmente improcedente, inclusive em alguns casos com o voto de representante do fisco, existindo, inclusive, situações em que, no julgamento, a Fazenda obteve um único voto.

No entanto, apesar de ambos julgamentos (cameral e plenário) terem reconhecido que a medida fiscal não tinha procedência, determinando o cancelamento da exigência e afastando, destarte, a responsabilidade do contribuinte para com a Fazenda Pública, existem situações em que a Representação da Fazenda, no uso de suas atribuições, interpõe recurso ao Secretário da Fazenda buscando a reforma do julgado do Pleno, sendo acolhida a pretensão fazendária.

O Poder Judiciário, inclusive o Tribunal de Justiça do Paraná, em várias oportunidades, já se manifestou acerca da questão. Em um voto emblemático, o Desembargador Jorge Vargas, com muita categoria, professou:

“A Fazenda Pública Estadual figura como parte perante o Conselho de Contribuintes, que atua como julgador; porém, como parte, só pode ganhar, porque se perder, de parte transforma-se em juiz superior e anula o que o juiz (Conselho) em segundo grau decidiu. Nada mais autoritário”.

O Tribunal de Justiça do Paraná, em outra oportunidade recente, analisou também a matéria em relação ao Recurso Hierárquico, assim se manifestando:

“A discussão dos autos gira em torno de verificar a possibilidade de análise, em sede de recurso hierárquico – da decisão administrativa proferida pelo Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais – CCRF.

Primeiramente, deve mencionar a insegurança jurídica que traria a reforma da decisão, tendo em vista que todos os recursos administrativos estariam a mercê da análise do Secretário da Fazenda.

Como bem salientou o Douto procurador às fls. 188: “… no caso em exame, é impossível o Secretário de Estado da Fazenda, por questões de política fiscal, reformar o mérito da decisão colegiada proferida pelo CCRF, servindo o recurso hierárquico tão somente para análise e supervisão aos atos administrativos viciados, acompanhados de nulidade flagrantes que prejudicam o bom andamento do processo administrativo.” Ressalta-se que a Administração poderá reaver seus atos, desde que sejam viciados de nulidade…”

No entanto, numa flagrante ofensa à estabilidade e à mencionada confiança legítima, foram publicados em vários Diários Oficiais do Estado (nº. 9461 de 28/05/15; nº. 9464 de 02/06/15; nº. 9465 de 03/06/15, entre outros) decisões em mais de 70 (setenta) Recursos Hierárquicos apreciados pela Fazenda Estadual, deploravelmente TODOS reformando as decisões do Pleno do Conselho de Contribuintes, algumas com recursos interpostos há mais de quatro anos que o contribuinte aguarda uma resposta da Administração.

Como se disse, todas essas decisões hierárquicas, sem exceção, foram no sentido de reformar a decisão do Colegiado, ou seja, foi restabelecida a exigência fiscal, tendo, inclusive, situações em que a Administração Fazendária já havia anteriormente se manifestado sobre a mesma matéria de direito e reconhecido como correto o julgamento do Conselho de Contribuintes. E mais, em nenhum dos casos se verificaram vícios e nulidades ocorridos no processo administrativo fiscal, condição única que poderia ensejar o manejo dos famigerados recursos hierárquicos, indo de encontro, então, ao entendimento já consolidado pelos Tribunais Pátrios.

Inclusive, pasmem, em decisões emitidas no final de 2014 (D.O.E. n. 9357 de 18-12-14 e n. 9361 de 29-12-14), a própria Secretaria da Fazenda do Estado do Paraná já havia julgado alguns recursos hierárquicos em favor dos contribuintes de matérias rigorosamente idênticas àquelas indicadas acima, estas que tomaram, surpreendentemente, direção oposta, sem nenhuma razão jurídica para tanto.

Diante disso, se questiona: qual seria o motivo da mudança de entendimento? Já que a matéria não sofreu qualquer modificação, inclusive no Judiciário. Com todo o respeito, pode mudar o Administrador, mas Administração Pública é a mesma, sob pena de quebra da segurança jurídica, já que o contribuinte não pode estar inseguro em relação a seus investimentos, com eventuais interpretações isoladas.

Dos 27 Estados da Federação, incluindo o Distrito Federal, apenas 7 mantêm em suas legislações o Recurso Hierárquico (como apelo à terceira instância de julgamento no âmbito do contencioso administrativo tributário), havendo, inclusive, propostas de sua extinção no projeto do Código de Defesa do Contribuinte em tramitação na Câmara Federal.

Recentemente, em maio do corrente ano, na posse do novo Presidente do Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais do Paraná (CCRF) e dos Conselheiros dos setores público e privado, o senhor Secretário da Fazenda, após ter conhecimento dos valores do crédito tributário pendentes e aguardando julgamento, manifestou no sentido de solicitar agilidade na apreciação dos processos e recomendou aos julgadores que fossem imparciais na análise dos lançamentos, sendo que, caso o contribuinte tivesse razão, fosse de imediato cancelada a exigência, com a eliminação do passivo pendente do contribuinte. Em contrapartida, se devido o tributo, fosse imediatamente colocado o débito à disposição da Fazenda para obter os recursos financeiros inerentes.

No entanto, pelo que se viu, a determinação emanada pela autoridade máxima da Fazenda Estadual, recomendando imparcialidade no que toca às exigências fiscais apreciadas pelo Pleno do Colegiado, sequer foi seguida pelo próprio senhor Secretário, basta verificar a quantidade de Decisões Hierárquicas (mais de 70…), reformando o que foi decidido pelo Conselho de Contribuintes.

Cabe neste ponto uma indagação: será que em todas essas Decisões do Pleno, realmente os contribuintes estavam errados? Pois todas que foram apreciadas, foram reformadas pelo Hierárquico.

Se realmente isto for procedente, cabe outra pergunta: valeria a pena manter o funcionamento do Conselho de Contribuintes, com toda a sua estrutura? Não seria mais econômico – e mais confiável – tanto para o Contribuinte como para Administração Pública, extinguir os Tribunais Administrativos e especialmente o nosso Conselho do Paraná? Indiscutivelmente, permitir que as decisões emanadas por um órgão técnico, em exercício contínuo há mais de 40 anos, em sentenças colegiadas, possam ser banalizadamente desfeitas por uma deliberação política, monocrática, com interesses eminentemente arrecadatórios, certamente seria permitirmos o sepultamento da tão propalada confiança legítima que o cidadão-contribuinte deposita em seus administradores.

E o que será mais grave – e provavelmente a Procuradoria do Estado tem custado a enxergar – estes julgados do Colegiado que foram reformados pelos Hierárquicos certamente irão desaguar no judiciário, com a inscrição do débito em Dívida Ativa, fazendo com que o contribuinte, para que possa discutir a validade do julgamento tenha que desembolsar valores até superiores aos dos créditos tributários em apreço, ou dar bens em garantia para discutir a pretensão fiscal. No entanto, muitos casos poderiam – e deveriam – ter sido finalizados nos Conselhos de Contribuintes. Ou seja, mais e mais congestionamento das vias judiciais.

Vale destacar que a administração pública do Paraná, preocupada com os encargos – especialmente de sucumbência – advindos de julgamentos desfavoráveis nos Processos Administrativos Fiscais na esfera judicial, editou em 22 de dezembro de 2.000 a Lei nº. 13.023, que em seu art. 7º, acrescentou a letra “d” ao inciso, XIV, art. 56, da Lei nº. 11.580/96 que trata do Processo Administrativo Fiscal de Instrução Contraditória, ao dispor que “os créditos tributários serão cancelados, com observância do disposto em decreto do Poder Executivo, no caso de o Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais ter proferido decisão final e irreformável, por mais de uma vez, sobre a mesma matéria, de forma favorável ao mesmo sujeito passivo da obrigação tributária, comprovado por certidão do referido órgão”.

O Decreto editado para esta finalidade foi o nº 3.341/2000 (DOE de 28.12.2000). Este procedimento vigeu até 28 de dezembro de 2005, quando foi revogado pela Lei 14.979.

Como se pode ver, administração sempre deve estar imbuída na obtenção de baixo custo, quer para o fisco, quer para o contribuinte, especialmente na escassez de recursos que nos encontramos. Essa é a mensagem contida no Código Paranaense de Defesa do Contribuinte (Lei Complementar 107/2005) nos seguintes dispositivos:

“A administração tributária deve ser de baixo custo, quer para o fisco, quer para o contribuinte” (Art. 2º, § 2º);

“Administração Fazendária, no desempenho de suas atribuições, pautará sua atuação de forma a impor o menor ônus possível aos contribuintes.” (Art. 27, “caput”).

Assim, pode-se concluir que a expedição de inúmeras decisões monocráticas, baseadas unicamente nas razões trazidas pela Fazenda, que levou o senhor Secretário da Fazenda acolhê-las, sem uma minudente análise das contrarrazões, com todo o respeito, andou na contramão dos discursos e no fundamento da essência da coisa pública.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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