É antiga a discussão no meio jurídico a respeito da possibilidade de restituição do ICMS em situações nas quais o substituto tributário recolhe o imposto sobre determinada base de cálculo presumida e verifica-se que o preço final da mercadoria, quando chega às mãos do consumidor, é menor do que aquele que foi presumido pelo fisco.[1]
As procuradorias alegam que o direito à restituição do ICMS surge apenas quando não há circulação de mercadoria ou prestação de serviço, não havendo direito à restituição quando a circulação de mercadoria ou prestação de serviço ocorre com a prática de preços menores do que os estimados pela fiscalização, entendimento este que é atualmente acolhido pelo Supremo Tribunal Federal.
Todavia, não pode tal entendimento continuar sendo mantido pela Corte Superior, posto que o direito à restituição é uma garantia constitucional do contribuinte face ao poder de tributar do Estado, sendo aplicável quando a base de cálculo presumida é menor do que a que efetivamente ocorre, posto que a base de cálculo é o aspecto quantitativo do fato gerador previsto pela legislação, estando a base de cálculo presumida implícita na expressão “fato gerador” constante no artigo 150, §7º, da Constituição Federal de 1988.
O artigo 150, §7º, é claro ao garantir o direito à restituição quando não há ocorrência do fato gerador previsto pela legislação tributária que embase lançamento por antecipação. O STF tem interpretado restritivamente tal dispositivo, ao argumento de que a expressão “fato gerador”, neste caso, englobaria apenas o aspecto material da hipótese de incidência tributária.
Ora, o que se vê, portanto, é que a corte está interpretando restritivamente uma expressão que é garantia constitucional do contribuinte face ao arbítrio do Estado. A interpretação restritiva não deve ser aplicada ao caso, posto que a base de cálculo é o aspecto quantitativo do fato gerador, sendo um de seus componentes mais relevantes, significando esta hermenêutica a quase anulação de uma garantia constitucional.
Regimes tributários baseados em estimativas ou antecipações são comuns no Direito Tributário, como é o caso da antecipação de Imposto de Renda feita na folha de pagamentos dos contribuintes. O imposto é retido durante o ano inteiro e, uma vez findo o ano-calendário correspondente ao fato gerador do imposto, é garantida a restituição ao contribuinte, caso se verifique que o imposto realmente devido é menor do que o que foi recolhido durante o ano-calendário.
Há também o caso do regime de tributação do Imposto de Renda pelo lucro presumido, que é devido trimestralmente pelos contribuintes. Durante o ano é recolhido o imposto com base em um lucro presumido pelo legislador, tomando-se como parâmetro para presunção o faturamento no trimestre. Nesse caso, não há restituição ao contribuinte caso se verifique que houve recolhimento durante o ano maior do que teria sido arrecadado caso o contribuinte estivesse no regime de tributação do lucro real.
Os dois exemplos são casos de antecipações de Imposto de Renda. Em um deles há a garantia da restituição do imposto pago ao contribuinte (caso da retenção na fonte), no outro não há garantia de qualquer restituição de imposto pago a maior (caso do lucro presumido). Ambos os regimes são constitucionais, mas por que no caso do regime do lucro presumido não há qualquer restituição de indébito ao contribuinte e, ainda assim, o regime é tido como constitucional?
Ocorre que o regime do lucro presumido se sustenta pelo fato de ser um regime de tributação facultativo, adotado apenas por aqueles contribuintes que vejam vantagens neste regime. Não há uma coação do Estado, portanto, para que o contribuinte se adeque ao regime do lucro presumido. Caso o contribuinte do Imposto de Renda assim deseje, pode sair de tal regime de tributação. Daí a sustentação do regime do lucro presumido, que implica em antecipação de pagamento de Imposto de Renda sem garantia do direito à restituição: o seu caráter facultativo.
Já o regime de recolhimento na fonte é um regime obrigatório, devendo necessariamente ser garantido ao contribuinte o direito à restituição caso o fato gerador presumido não se concretize.
Bons exemplos, também, são os casos dos contribuintes do IPTU e do IPVA do Rio de Janeiro, que pagam os impostos no início do exercício fiscal, antes de ocorridos completamente os fatos geradores, que são, respectivamente, ser proprietário de propriedade predial e territorial urbana e ser proprietário de veículo automotor.
Caso o imóvel seja destruído por uma catástrofe natural ou caso o veículo seja furtado, não ocorrendo totalmente o fato gerador presumido, deve ser garantida a restituição ao contribuinte proporcionalmente à ocorrência do fato gerador, por determinação do artigo 150, §7º, da Constituição Federal. O mesmo entendimento vale para o ITR.
Sendo assim, quando há instituição de regime de antecipação de recolhimento de imposto, regime este de caráter obrigatório para o contribuinte, o reconhecimento do direito à restituição do indébito ao contribuinte também é obrigatório para o ente tributante, referente aos fatos geradores presumidos não ocorridos. É esta a disposição da Constituição Federal, uma limitação ao poder de tributar, uma garantia constitucional.
Isto posto, restaria saber quem tem o direito à restituição de indébito de ICMS. Não obstante existirem posições divergentes, o entendimento dominante no âmbito jurisprudencial brasileiro, por força do artigo 166 do CTN, é o de que o direito à restituição pertence a quem suporta o encargo financeiro do ICMS. Normalmente trata-se do consumidor final, exceto quando o alienante da mercadoria ou o prestador de serviços não repassa o ônus econômico referente ao indébito de ICMS.[2]
Restaria, assim, ao consumidor final pleitear a restituição, ou poderia o alienante da mercadoria ou prestador de serviços não repassar o ônus econômico e pedir a restituição do indébito. Dúvida, todavia, surgiria ao se questionar se o contribuinte do ICMS poderia alienar uma mercadoria ou prestar serviço e se creditar do valor referente ao indébito de ICMS oriundo da diferença entre o preço efetivamente praticado e o preço usado para cálculo da substituição tributária.
Por mais que seja mais prático aceitar o imediato creditamento de ICMS pelo contribuinte para compensação com seus débitos tributários, a verdade é que tal possibilidade depende de expressa previsão da lei, por se tratar de compensação tributária.
Não havendo tal previsão, a compensação se mostra impossível, sendo necessário que o contribuinte apresente pedido de restituição de indébito de ICMS para ter a devolução de tributo garantida. Apenas caso o pedido não seja analisado dentro do prazo de 90 dias previsto pelo artigo 10 da Lei Complementar 87/96 é que pode haver o creditamento do valor de ICMS pleiteado, observado o §2º do artigo 10 da mesma lei.
Todavia, caso a legislação estadual autorize a escrituração de crédito fiscal de ICMS resultante da diferença entre o preço usado como base de cálculo da substituição tributária e o preço efetivamente praticado pelos contribuintes, tal autorização é perfeitamente constitucional, por ser uma compensação de débitos e créditos tributários prevista em lei.
Não é necessária a celebração de um convênio entre os Estados para que seja lícita a previsão em legislação estadual de compensação ou de restituição de indébito de ICMS oriundo da inocorrência de fato gerador presumido por substituição tributária.
Por se tratar de mera declaração do que já é determinado pelo artigo 150, §7º, da Constituição, uma norma constitucional de eficácia ilimitada, o Poder Executivo pode deferir pedidos de restituição mesmo sem lei estadual reconhecendo expressamente o direito à restituição. Caso a legislação estadual reconheça tal direito, trata-se de disposição meramente declaratória.
Já a compensação é assunto pertinente à forma de restituição, que possui regulamentação própria pelo artigo 170 do CTN, não se tratando de um benefício fiscal, por isso sendo desnecessário convênio que respalde lei estadual sobre o tema.
Tem-se, em verdade, que a atual sistemática do regime de substituição tributária do ICMS é essa, quando o preço presumido é maior do que o praticado pelo contribuinte, a restituição é garantida por força do artigo 150, §7º, da Constituição. Quando o preço presumido é menor do que o praticado pelo contribuinte, a fiscalização não pode cobrar o imposto calculado sobre a diferença entre preço presumido e preço real, já que não há previsão legal ou constitucional para embasar o lançamento tributário.
Esse regime prioriza a eficiência, garantindo a restituição ao contribuinte e eximindo a fiscalização do investimento de tempo e recursos decorrentes do trabalho de fiscalizar plenamente os contribuintes que estão no final de uma cadeia econômica.
A doutrina de José Eduardo Soares de Melo resume bem a questão da necessidade do reconhecimento do direito à restituição:
“A descoincidência entre o valor real (efetiva operação realizada entre o substituído e o consumidor) e o valor presumido (anterior situação existente entre substituto e substituído) caracteriza uma base de cálculo fictícia, resultando num ICMS fictício, que não pode prevalecer diante dos princípio da segurança e certeza do crédito tributário, indispensáveis no caso de intromissão patrimonial.
Fato Gerador Presumido – na dicção constitucional (§7º do art. 150) -, apto a permitir a restituição, não significa somente a inexistência do fato, mas também a configuração ‘parcial’ de seus elementos, especialmente a base de cálculo que compreende parte do fato gerador. Na medida em que se nega a restituição parcial dos valores antecipadamente recolhidos (a maior) estará sendo violado o princípio da capacidade contributiva, uma vez que a presumida a riqueza do contribuinte (substituído) não veio ocorrer concretamente. Negada a restituição, o contribuinte estará arcando com tributo maior do que o efetivamente devido, porque o referido valor não integrara seu patrimônio, acarretando efeito confiscatório.”[3]
Uma questão não tão bem debatida é o fato de ser necessário o pagamento de juros ao contribuinte em relação à restituição do indébito. Em qualquer regime de antecipação de impostos, caso o fato gerador presumido não ocorra deve ser garantida ao contribuinte a restituição do imposto com atualização monetária e pagamento de juros indenizatórios pelo tempo em que a propriedade do cidadão foi cerceada.
Caso contrário, seria preferível ao fisco usar regimes de antecipação, não com o intuito de facilitar o trabalho da fiscalização, mas sim pelo fato de ser financeiramente mais vantajoso cobrar antes o tributo. Por que o Estado adotaria o regime normal de tributação, quando pode cobrar antecipadamente o tributo sem indenizar o contribuinte?
É uma grave violação do direito de propriedade, insculpido no 5º, XXII, da Constituição, tolerar que se possa exigir antecipadamente tributos do contribuinte. O contribuinte, pelo mero fato de estar pagando adiantadamente o imposto, já sofre um ônus econômico que é inconstitucional, sendo a própria EC 03/1993 uma emenda de constitucionalidade duvidosa por estar autorizando cobranças antecipadas de tributo.
O correto, o juridicamente correto, caso se queira exigir do contribuinte antecipadamente um imposto, seria, no mínimo, dar um desconto para aqueles que o fazem, não obstante, ainda assim, não haver em muitos casos capacidade contributiva do contribuinte para o pagamento adiantado.
A Constituição de 1988 determina, em seu artigo 5º, XXV, que, no caso de iminente perigo público, as autoridades podem usar a propriedade dos cidadãos, assegurado ao proprietário o direito de indenização ulterior, em caso de dano. Essa disposição constitucional é perfeitamente aplicável às situações tributárias. Trata-se da instituição dos empréstimos compulsórios, que são tributos de competência da União, previstos no artigo 148.
Por mais que Estados e Municípios não possam instituir empréstimos compulsórios, o fazem de forma sutil ao instituírem regimes de antecipação tributária, que são economicamente vantajosos para os entes tributantes, que recebem antecipadamente uma dívida e, ainda, quando recebem um pagamento a maior, restituem o indébito sem a ele acrescer juros.
Conclui-se que o contribuinte tem o direito à restituição referente ao imposto pago a maior, acrescido de juros, correspondente à diferença entre a base de cálculo presumida pela substituição tributária e a base de cálculo real. Caso a base de cálculo real seja maior do que a presumida, não pode o Poder Executivo efetuar lançamento fiscal para cobrança do ICMS relativo a tal diferença, por falta de previsão legal e constitucional.
Infere-se, ainda, que o direito à restituição decorre diretamente do artigo 150, §7º, da Constituição, uma norma de eficácia ilimitada, não havendo necessidade de previsão na legislação estadual reconhecedora do direito à restituição.
Quanto à forma de restituição, ela deve ser feita por meio de pedido de restituição de indébito, conforme previsão do artigo 10 da LC 87/96. Somente caso haja previsão na legislação estadual pode a compensação ser diretamente feita mediante creditamento na escrituração fiscal, por se tratar de norma de compensação tributária. Não se trata de um benefício fiscal, não havendo necessidade de disposição em convênios a respeito do direito à restituição ou a forma como ela pode ser feita.
[1] RE 389.250-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 9-11-2004, Segunda Turma, DJ de 26-11-2004; RE 373.011-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 17-6-2008, Segunda Turma, DJE de 1º-8-2008; RE 567.216-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 25-2-2014, Segunda Turma, DJE de 7-3-2014; RE 453.125-AgR-segundo, Rel. Min.Joaquim Barbosa, julgamento em 4-10-2011, Segunda Turma, DJE de 21-10-2011; RE 325.260-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 5-11-2002, Primeira Turma, DJ de 7-2-2003; AI 761.817-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-4-2012, Segunda Turma, DJE de 8-5-2012.