“In democratic societies the rule of law safeguard´s people´s rights, their endeavour and their humanity. But unless the rule of law is enforceable or enforced free of discrimination or corruption, rights have little meaning” Michael D’Ascenzo, Australian Commissioner of Taxation. [2]
Nos primeiros anos de estágio fui incumbido por meu chefe, que estava em viagem a Portugal, de reportar o resultado do julgamento de um recurso de um cliente que seria apreciado pelo 1º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda.
Enchi-me de orgulho da missão atribuída. Estava tranquilo. Seria o arauto de um desfecho favorável, afinal o processo em questão era o último de vários casos idênticos que já havíamos ganhado. Tratava-se de uma série de autuações fiscais em que se acusava de distribuição disfarçada de lucros (“DDL”) quatro empresas de um mesmo grupo econômico, sediadas em diferentes estados da federação (Amazonas, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro), em consequência da venda de um parque industrial.
Todos os nossos recursos anteriores relativos às demais empresas foram providos por unanimidade e era certo que a 1ª Câmara do 1º Conselho aplicaria esses precedentes para cancelar a última autuação que faltava ser julgada, lavrada contra a empresa sediada em Salvador.
Foi assim, com a certeza da boa notícia, que cheguei da faculdade no escritório e sem delongas telefonei para nosso correspondente em Brasília que acompanhara o julgamento, realizado na parte da manhã: “- Oi Rafael, aqui é o Roberto, como foi o julgamento?”. “- Pois é Roberto, vocês perderam, o recurso foi considerado intempestivo”.
Fiquei estupefato, sem chão, desesperado. “- Mas como!?!? Isso é impossível. Deve ter havido algum engano.” E para aumentar meu desespero vem a secretária do chefe dizer que ele já havia ligado de Lisboa pedindo notícias do julgamento e que mandara eu enviar um fax com as novidades. Pânico. O que dizer? O que fazer?
Corri atrás da pasta do processo buscando alguma pista e, para meu alívio, encontrei bem na frente uma correspondência assinada pelo diretor jurídico da empresa informando que eles (clientes), que tinham se incumbido do protocolo, não puderam dar entrada no dia do prazo porque caíra em 24 de junho, dia de São João e feriado em muitas cidades do Nordeste, como era o caso de Salvador. O protocolo aconteceu no primeiro dia útil subsequente. Estava esclarecida a “intempestividade”. Faltava conseguir um novo julgamento.
Ligo para o Conselho de Contribuintes. Horário de almoço. Não conseguia acessar a secretaria. Tanto insisto que uma alma caridosa transfere a ligação para a presidência. Falo com a secretária. Decerto apiedada daquele estagiário em estado catatônico, transfere a ligação para a Presidente do Conselho, Dra. Mariam Seif que ouve atenta meu relato e, com a voz grave que lhe é característica, me tranquiliza: “- Pode deixar meu filho. Entendi o problema. Vamos fazer o seguinte. Eu vou me informar se a repartição abriu no dia 24 de junho em Salvador. Você peticiona por fax expondo a questão. Se tiver sido mesmo feriado faremos novo julgamento”.
O duro era explicar o imbróglio para o chefe em Portugal, que em um ataque de ansiedade começava a ligar insistentemente. Melhor não dizer nada; problemas ainda sem solução não se comunicam à distância; vamos esperar a resposta da Dra. Mariam Seif, afinal o prazo fora cumprido.
Mas eram anos “A.I.” — antes da internet — e para obter a informação do feriado soteropolitano tive que ligar para a prefeitura da capital baiana. Para minha alegria, logo após o pedido, muito rapidamente recebi um fax com a lei municipal que instituía o feriado. A situação começava a se acertar. Redigi a petição e a instrui com cópia da Lei municipal 1.997, de 21/6/1967 (nunca vou me esquecer dessa lei!). Alguns minutos depois liguei para o Conselho. Tudo certo: Confirmado o feriado, confirmado que a repartição estava fechada no dia 24/6; confirmado o protocolo tempestivo e deferida a realização de novo julgamento na sessão do dia seguinte. Agora podia falar com o chefe, explicar o ocorrido e torcer para que no dia seguinte as coisas se passassem com a esperada tranquilidade. E não deu outra, no dia seguinte pudemos comemorar a vitória com mais um julgamento unânime.
Essa foi minha primeira experiência “advogando” no Conselho de Contribuintes. Não poderia ter sido mais emocionante; não poderia ter sido melhor. Conheci uma “casa do contribuinte”, um espaço onde o cidadão podia se fazer ouvir e ter seus direitos respeitados e reconhecidos. Um órgão de julgamento imparcial que aplicava a lei fiscal aos casos concretos sem receio de confirmar exigências quando cabíveis e de anular autuações fiscais que não tinham fundamento.
O tempo passou, governos se sucederam e o Conselho de Contribuintes acabou. A burocracia achou que deveria reformulá-lo e dar novo nome. Os contribuintes foram desalojados de sua casa. Era o ano de 2008, e pela MP 449 criou-se o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A casa do contribuinte tornara-se uma casa da burocracia fazendária. As estatísticas não mentem. Como noticiado na Revista Eletrônica ConJur.
“A taxa de sucesso da Receita Federal no Carf desmente o pensamento de que se trata de um órgão corrupto que pende a favor de quem paga. O Fisco comemora que 96% das autuações fiscais de 2010 julgadas até 31 de dezembro de 2014 foram mantidas pelo Carf. E em 75% das vezes o valor da autuação foi confirmado pelos conselheiros.” [3]
Quem milita junto ao Carf sabe muito bem que nos últimos anos as chances de vitória dos contribuintes foram substancialmente reduzidas, principalmente em causas de aplicação geral, como é o caso, por exemplo, da chamada “trava” de 30% para compensação de prejuízos fiscais. A Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) vinha pacificamente considerando a “trava” inaplicável no ano em que a empresa se extingue, inclusive por fusão, cisão ou incorporação, mas, de uma hora para outra, pelo voto de qualidade[4], os julgadores do Fisco reverteram a orientação favorável aos contribuintes, autorizando uma enxurrada de autuações contra empresas que acreditaram e seguiram as diretrizes então fornecidas pelo órgão máximo de julgamento da Administração fiscal federal.[5]
A sistemática reversão de julgados, invariavelmente pelo voto de qualidade, quórum de ocasião pouco democrático, é uma lamentável afronta à segurança jurídica dos contribuintes que vinha sendo adotada com frequência no Carf e na CSRF.
Insegurança que se agigantou com o progressivo distanciamento dos agentes fiscais do Poder Executivo federal do princípio da legalidade tributária. Com efeito, em nome dos princípios da solidariedade e da capacidade contributiva, sem base em qualquer disposição legal autoaplicável, nos últimos anos pulularam autuações fiscais contra toda e qualquer empresa que tenha realizado algum planejamento tributário.
Exemplos paradigmáticos dessa realidade são as autuações em matéria de ágio que ganharam o noticiário, em que o Fisco tem construído argumentos para tornar esvaziado de aplicação concreta o direito de dedução da amortização do ágio na aquisição de investimentos previsto no artigo 7º da Lei 9.532/97. Qualquer operação que tenha envolvido a apuração de ágio e que o valor do mesmo tenha sido deduzido foi autuada. Os fundamentos invocados são de toda a sorte: Abuso de direito, abuso de formas, simulação, fraude à lei, falta propósito negocial, uso de empresa veículo, enfim, seja lá o que for; tudo se mistura num liquidificador e jorram acusações e multas qualificadas, de nada mais nada menos que 150% o valor dos tributos bilionários cobrados.
A operação zelotes só confirma que o excesso de exação por uma interpretação forçada da lei tributária, distanciada da garantia em que o princípio da legalidade se traduz, desagua em tratamento discriminatório e corrupção. É uma pena que estejam maculadas não só as decisões suspeitas de favorecimento, como também aquelas em que os contribuintes foram derrotados, pois quem garante que não foram alvos da vendetta daqueles que buscavam lucrar “vendendo” um suposto poder de influenciar decisões e não foram atendidos em suas “ofertas” de serviços profissionais. Quem garante que não houve julgamentos de retaliação?
A solução, no entanto, não passa pelo fim do órgão administrativo. Não “tem que acabar e mandar tudo para o Judiciário”, como pensam alguns. O Judiciário não está preparado para as tecnicidades do processo administrativo fiscal; o Judiciário não aguentaria mais uma enxurrada de processos e isso só prejudicaria os contribuintes e o Fisco. A revisão do ato administrativo em que o lançamento se traduz pode e deve ser feita no seio da própria Administração, que está amplamente preparada e equipada para tanto.
Cabem, no entanto, medidas de aprimoramento, de transparência de gestão, que permitam uma ampla defesa eficaz e efetiva do contribuinte no processo administrativo fiscal federal, como lhe garante a Constituição.
A primeira medida deveria ser a abertura aos contribuintes e seus advogados dos julgamentos realizados em primeira instância administrativa. Não faz qualquer sentido que os julgamentos de primeiro grau sejam secretos. Perde-se muito com o distanciamento, pois questões de fato poderiam ser debatidas, provas poderiam ser discutidas e apresentadas, enfim, muitos lançamentos poderiam ser corrigidos com a simples oitiva do contribuinte no julgamento da impugnação em primeira instância pelas Delegacias de Julgamento. Cansamos de ver o Carf resolver baixar processos em diligência para aprimoramento da instrução probatória, resoluções muitas vezes provocadas pela defesa oral da parte ou pelo debate que lhe seguiu. Por que não permitir esse debate em primeira instância?[6]
A segunda medida que reputamos fundamental para a estabilidade das decisões seria o fim do voto de qualidade privativo da representação fiscal. Deveria ser criado um sistema que permitisse que esse voto de desempate fosse proferido também, de forma alternada, pelos representantes dos contribuintes, seja por uma presidência rotativa das turmas, seja pela atribuição do desempate ao vice-presidente das Turmas. Há mecanismos semelhantes nos órgãos de julgamento dos estados, como é o caso do TIT em São Paulo e no Conselho de Contribuintes no Rio de Janeiro[7].
Uma terceira medida, transcendentalmente importante, será assegurar estabilidade na condição de julgador do conselheiro que funciona em representação da fazenda nacional, seja por um mandado mais longo (seis anos, por exemplo)[8], seja por um direito de opção a continuar em funções de julgamento, inclusive em primeira instância.
É inadmissível que um funcionário que se prepara para ser julgador fiscal possa perder seu cargo, ou não ser reconduzido, por votar em sentido favorável aos contribuintes. Foi o que a Conjur noticiou ter acontecido com o Conselheiro Carlos Eduardo de Almeida Guerreiro:
“Quando o caso chegou ao Carf, o conselho decidiu separar os processos por CNPJ das subsidiárias da Gerdau. Em 2012 foi decidido o primeiro dos casos e o Carf entendeu que o ágio interno poderia ter sido usado. A votação estava empatada e o voto de minerva foi dado pelo então conselheiro Carlos Eduardo de Almeida Guerreiro.
Em abril de 2013, quando venceu seu mandato no Carf, o Ministério da Fazenda não o reconduziu ao cargo. O Carf é composto, em quantidades iguais, por conselheiros indicados pela Fazenda e por uma comissão que representa os contribuintes. Guerreiro, auditor fiscal, representava a Fazenda. E a Receita Federal o mandou para Porto Alegre para trabalhar na fiscalização aduaneira do aeroporto.
Agora vejamos o que disse Guerreiro em seu voto vencedor no Acórdão 1101-00.708, de 11/04/2012, que assustou ao Fisco:
“Em direito tributário não existe o menor problema em a pessoa agir para reduzir sua carga tributária, desde que atue por meios lícitos. Inclusive, é de se esperar que as pessoas façam isso, sendo recriminável exatamente a conduta oposta. A grande infração em tributação é agir intencionalmente para esconder do credor os fatos tributáveis (sonegação), mas isso não ocorreu no caso concreto.
Quando uma pessoa física escolhe declarar pelo modelo completo ou pelo simplificado, visando reduzir sua carga tributária, está agindo racional e licitamente. Sua conduta é artificial, mas é admitida. O mesmo ocorre com dois profissionais que se organizam como empresa para reduzir a carga tributária que teriam como pessoas físicas autônomas.
Enfim, desde que o contribuinte atue conforme a lei, ele pode fazer seu planejamento tributário para reduzir sua carga tributária. O fato de sua conduta ser intencional (artificial), não traz qualquer vicio. Estranho seria supor que as pessoas só pudessem buscar economia tributária licita se agissem de modo casual, ou que o efeito tributário fosse acidental.
No caso em concreto, o contribuinte argumenta que a operação que redundou no aproveitamento do ágio interno fazia parte de uma reorganização societária e, por isso, não seria artificial. Mas, mesmo que tivesse sido especificamente intencional, estaria no campo do planejamento tributário (elisão) e não da evasão ou erro.
Como dito acima, a noção de abuso de direito não pode ser aplicada pelos agentes do Fisco. Ademais, vale destacar que a previsibilidade da tributação é um dos seus aspectos fundamentais. Por isso, não é admissível lançamentos fiscais feitos com evidente violação da legislação tributária”.[10]
A coragem da fala de Guerreiro em defesa dos direitos e garantias do contribuinte, em defesa da segurança jurídica, é que fez esse órgão da administração fiscal ser respeitado e admirado.
Recuperar o respeito abalado pelos fatos recentes passa, também, por honrar as tradições. Por que não o imediato regresso à denominação original de Conselho de Contribuintes, que existe desde a sua instalação em 1925? Os contribuintes precisam recuperar a sua casa, inclusive no nome, e não podem perder o trabalho que a amplíssima maioria dos conselheiros de ambas as representações desenvolveu por todos esses anos com profunda dedicação, independência e comprometimento profissional e intelectual[11].
Como disse Zuenir Ventura em sua crônica de sábado passado no O GLOBO a respeito da desilusão de um jornalista português com o estado das coisas no Brasil, “(…) apesar de tudo, o Brasil de hoje é melhor do que o dos militares, tanto quanto Portugal de agora – com um ex-primeiro-ministro preso por corrupção e uma grave recessão econômica – é melhor do que o da ditadura salazarista. (….) Hugo Gonçalves tem razão quando fala do “Brasil que dói”. Mas, ao contrário do que lhe disseram, tem solução, tem cura, ainda que a longo prazo. Basta continuar usando como remédio a democracia, coisa que nosso processo histórico não tem feito de forma continuada”.
Definitivamente o processo de reformulação do Carf será doloroso. Dói, mas tem cura. Escrevo na noite do domingo de Páscoa e é significativo que, nessas linhas, possa transmitir o anseio, que é também de muitos, por um Carf renascido e democrático, como um verdadeiro, renovado e, porque não, rebatizado Conselho de Contribuintes.
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No próximo dia 14 de abril, às 19 horas, será realizado na Livraria da Travessa no Shopping Leblon no Rio de Janeiro o lançamento do livro “Consultor Tributário – Estudos Jurídicos”, pela editora Topbooks, que reúne artigos de minha autoria e dos colegas de coluna Heleno Torres, Gustavo Brigagão e Igor Santiago. Contamos com a presença de todos que puderem nos prestigiar. Em breve divulgaremos os locais em São Paulo e Belo Horizonte.
[2] Tradução livre: “Em sociedades democráticas o princípio da legalidade salvaguarda os direitos dos indivíduos, seus esforços e sua humanidade. Mas se a legalidade não for aplicável ou aplicada livre de discriminação ou corrupção, os direitos têm pouco sentido”. Cfr. Taxpayer´s Rights: Theory, Origin and Implementation, Duncan Bentley, Ed. Kluwer, Holanda, 2007.
[4] O voto de qualidade é o voto de desempate proferido pelo presidente da Turma que é obrigatoriamente representante do Fisco.
[5] Cfr. http://www.conjur.com.br/2012-nov-21/consultor-tributario-nao-seguranca-juridica-decisoes-estaveis
[6] O movimento pela abertura das sessões de julgamento foi iniciado pela Seccional da OAB/RJ, representada pelo presidente da Comissão de Direito Tributário, nosso colega de advocacia e Conselheiro do CARF Maurício Faro. Já existe uma sentença favorável à pretensão dos contribuintes fluminenses proferida pelo Juiz titular da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro Dr. Firly do Nascimento Filho que, no entanto, se encontra com a eficácia suspensa por decisão do TRF-2. Cfr. http://www.conjur.com.br/2014-nov-05/advogados-rio-ganham-acesso-sessoes-julgamento-receita; e ainda http://www.conjur.com.br/2015-jan-16/liminar-proibe-julgamento-aberto-delegacia-receita-rj
[7] A CONJUR noticia que semelhante sugestão foi encaminhada ao Ministro da Fazenda pelo colega Marcelo Knofpelmacher, presidente do Movimento em Defesa da Advocacia (MDA). Cfr. http://www.conjur.com.br/2015-mar-31/alvo-operacao-carf-sessoes-julgamento-suspensas
[10] Cfr. http://www.conjur.com.br/2012-ago-20/conselheiro-carf-explica-agio-interno-tambem-amortizado
[11] A moção de apoio do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (“CESA”) é muito bem vinda e demonstra a importância do CARF e de seu valor institucional. http://d-app.cesa.org.br/e/4762/2037/12426/86b23; cfr também http://www.conjur.com.br/2015-abr-06/maioria-integrantes-carf-honra-valores-defende-cesa
Fonte: Revista Consultor Jurídico