Controle formal de benefícios fiscais prevalece no Supremo

É bastante difundida, no pensamento jurídico, a noção de que a cobrança de tributos e a instituição de exonerações são duas faces de uma mesma moeda: o poder de tributar. A competência constitucional que autoriza a imposição de tributos também permite a concessão de benefícios fiscais.

Há, no entanto, diferenças importantes entre as duas situações. As preocupações que, em geral, orientam o debate tributário não são exatamente as mesmas que ganham destaque quando se discute a validade de leis de incentivo. Já não se trata de limitar o poder tributário e proteger o contribuinte contra a imposição indevida, excessiva ou extemporânea, mas o inverso: importa definir parâmetros de controle da “não tributação”. É preciso ver o tributo ao avesso, dizemos.[1]

Essa outra preocupação não escapa ao texto constitucional em vigor. A Constituição Federal tanto protege a propriedade privada da atuação arbitrária do Fisco (por exemplo, no artigo 150, I a IV) quanto o patrimônio público e o interesse coletivo contra renúncias de receita injustificadas e benefícios fiscais irregulares (por exemplo, nos artigos 150, §6o, e 155, § 2º, XII, “g”).

Exercendo o papel de guardião da Constituição, o Supremo frequentemente depara com a necessidade de discutir a validade de leis de incentivo. Em relação a esse tema, cinco são as principais questões enfrentadas pelo Tribunal: (1) a iniciativa legislativa; (2) a exigência de lei específica; (3) a impossibilidade de extensão do alcance dos benefícios fiscais com base no princípio da isonomia; (4) a invalidade da atuação unilateral por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal no caso do ICMS e (5) o impacto das leis de incentivo na parcela do produto da arrecadação tributária partilhada com outros entes federados.

Quanto à primeira questão, o entendimento consolidado no STF é claro no sentido que não há reserva de iniciativa para leis de benefício fiscal. Não se aplica o §1º do artigo 61, que trata das hipóteses de iniciativa privativa do presidente da República e, em matéria tributária, diz respeito apenas aos territórios federais. Tampouco se aplica a regra do artigo 165, porque o impacto dos incentivos fiscais nas contas públicas — isto é, a renúncia de receita — não faz delas verdadeiras leis orçamentárias, para os fins do disposto nesse artigo. A iniciativa de lei para benefícios fiscais é concorrente, não cabe apenas ao Chefe do Executivo. A tese foi inclusive objeto de recente reafirmação de jurisprudência no Plenário Virtual do STF, no julgamento do ARE 743.480, de relatoria do ministro Gilmar Mendes (tema 682).

A segunda questão está na forma de concessão do benefício fiscal. O artigo 150, §6º, da Constituição Federal exige lei específica para “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições”.

A regra serve de fundamento para que o Tribunal declare a inconstitucionalidade de benefícios fiscais estabelecidos sem qualquer amparo legal, por decreto, ou com base em autorizações genéricas, na forma de delegações ao Poder Executivo.[2] Na ADI 3.462, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, por exemplo, declarou-se a nulidade, por ofensa ao artigo 150, § 6º, de lei do estado do Pará que autorizava genericamente o Executivo a conceder remissão e anistia.[3] Na ADI-MC 1.296, de relatoria do ministro Celso de Mello, o Tribunal suspendeu lei de Pernambuco que conferia ao Executivo estadual o poder de conceder, mediante decreto específico, “benefícios ou incentivos fiscais relativos aos tributos estaduais, em favor de refinaria de petróleo”. São esses dois casos, entre outros, que se podem citar.

Não são muitos, no entanto, os precedentes em que Tribunal declara a inconstitucionalidade de lei de incentivo apenas pelo descumprimento do requisito de “especificidade”. Tal constatação, aliás, somada à conhecida prática legislativa de inserir penduricalhos e caudas legislativas contendo vantagens fiscais em leis e medidas provisórias com os mais diversos temas, indica a baixa efetividade do artigo 150, § 6º, da Constituição Federal, ao menos quanto ao requisito da especificidade.[4]

O preceito do artigo 150, § 6o, também tem relação com a terceira questão constitucional que destacamos aqui. Trata-se da controvérsia sobre a possibilidade de o Judiciário, com base no princípio da isonomia, ampliar o alcance de regras de incentivo para incluir outros tributos, situações ou sujeitos não expressamente agraciados pela lei. Prevalece no Supremo a orientação que rechaça essa tese, com fundamento no artigo 150, §6o, e no argumento de autocontenção, que impede o Judiciário de atuar como “legislador positivo”.[5]

A orientação é, de longa data, assente no Tribunal, e foi confirmada no RE 405.579/PA, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa, julgado em 1º de dezembro de 2010, contra os votos divergentes dos ministros Ayres Brito, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. Os que votaram pela revisão de jurisprudência entenderam que se deveria conferir à regra de incentivo impugnada interpretação conforme à Constituição e, por conseguinte, estender a vantagem aos demais contribuintes em situação equivalente aos beneficiados, mas não alcançados pela regra de benefício fiscal. Seria essa, segundo a divergência, a forma mais adequada de se superar a inconstitucionalidade verificada no caso, porque a violação da isonomia não constava do benefício fiscal em si, mas no seu alcance restrito a certo grupo de contribuintes. A maioria, todavia, rechaçou a tese e manteve-se fiel à orientação tradicional da Corte.

A quarta questão diz respeito ao peculiar procedimento de concessão de benefícios fiscais em matéria de ICMS. É bastante conhecida a orientação do STF no tema: a concessão unilateral de benefícios fiscais pelos Estados no caso desse imposto viola a Constituição Federal. O fundamento está no artigo 155, § 2º, XII, “g”, do texto constitucional, que prescreve deliberação obrigatória dos Estados e do Distrito Federal, na forma de lei complementar, para concessão e revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS.

O procedimento está atualmente previsto na Lei Complementar 24/1975. A lei determina que os benefícios fiscais serão concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal, mediante decisão unânime (artigo 1o), e revogados, pelo quórum de quatro quintos (artigo 2o, §2o). A propósito, a exigência de unanimidade (que, na prática, dá poder de veto a qualquer dos Estados e ao Distrito Federal) está em questão na ADPF 198/DF, de relatoria do ministro Dias Toffoli, em trâmite no STF.

Segundo o Supremo, sem prévia celebração de convênio, a lei estadual que dá benefício fiscal em matéria de ICMS é inconstitucional por vício de forma. São muitos os julgados nesse sentido. [6] Há inclusive, em tramitação, a Proposta de Súmula Vinculante n. 69, do Ministro Gilmar Mendes, com o seguinte enunciado: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional.”

Também sobre a guerra fiscal em matéria de ICMS, merece destaque o RE 628.075, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, tema 490 da sistemática da repercussão geral. O caso diz respeito à adoção de medidas unilaterais de retaliação por Estado-membro em face benefícios fiscais concedidos também de forma unilateral. Trata-se, mais precisamente, da anulação unilateral dos créditos – glosa de créditos – decorrentes de benefícios fiscais concedidos por outras unidades federativas sem a observância do previsto no artigo 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal. O recurso ainda aguarda julgamento.

A quinta questão está no impacto dos benefícios fiscais nas receitas transferidas a outros entes, ou seja, na redução ou postergação do montante partilhado por conta de medidas de incentivo. O caso-líder é o RE 572.772/SC, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, processo-paradigma da repercussão geral (tema 42), julgado em 18.6.2008.

Estava em debate benefício fiscal concedido, na forma de postergação do recolhimento do valor devido a título de ICMS, para empresas instaladas no território de Santa Catarina.[7] O diferimento acabava por reduzir também os valores repassados aos municípios do Estado, que receberiam imediatamente só 25% dos 25% a que fariam jus, de acordo com o artigo 158, IV, da Constituição Federal. Por isso, a retenção dos valores partilhados com a municipalidade configuraria “indevida interferência do Estado no sistema constitucional de repartição de receitas tributárias” e, por conseguinte, ofensa à autonomia federativa do ente, segundo consta do acórdão.

O STF, por unanimidade, negou provimento ao recurso do estado de Santa Catarina e reconheceu o direito do município de Timbó a receber, imediata e integralmente, a fração do produto da arrecadação do ICMS a que teria direito, independentemente do que dispunha a legislação estadual.

Fixada a tese em sede de repercussão geral, a mesma orientação, como é cediço, deve servir para todos os demais casos com idêntica controvérsia. O Plenário, em 3 de fevereiro 2010, chegou inclusive a aprovar a Proposta de Súmula Vinculante 41, que deu lugar à Súmula Vinculante 30, com o seguinte teor: “É inconstitucional lei estadual que, a título de incentivo fiscal, retém parcela do ICMS pertencente aos Municípios.” Apesar de aprovada pelo Plenário, controvérsia quanto ao texto e ao alcance do enunciado sumulado ensejou a suspensão da publicação da Súmula um dia após sua aprovação, situação que persiste até o momento.

Em 2013, o tema foi novamente trazido à baila, no RE 705.423. Desta vez, está em debate o impacto dos benefícios ficais concedidos pela União, em IR e IPI, em relação aos recursos partilhados com os municípios por meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). A questão teve repercussão geral reconhecida pelo Tribunal (tema 653) em 5 de setembro de 2013, e ainda aguarda julgamento. O relator é novamente o ministro Ricardo Lewandowski.

A análise dos julgados, no tema dos benefícios fiscais, indica que o STF está atento à necessidade de controlar também esse outro lado da tributação, o dos benefícios fiscais. Os julgados parecem apontar, no entanto, certa tendência da Corte a limitar-se aos aspectos formais das leis de incentivo — a iniciativa, a forma, a exigência de lei especial e a necessidade de celebração prévia de convênio no caso do ICMS. Os principais, senão únicos, casos em que se chegou a discutir o conteúdo da lei de incentivo são aqueles em que se recusou a possibilidade de ampliar a aplicação da regra para outros sujeitos não previstos na lei instituidora, tomando-se como parâmetro a isonomia.

Seja por autocontenção, seja pelo modo como os casos são apresentados à Corte, os debates ficam quase sempre circunscritos à inconstitucionalidade formal, sem avançar no conteúdo das leis de incentivo nem considerar a aplicação do controle de proporcionalidade à matéria. Espera-se que esses parâmetros sejam suficientes para conter o uso, muitas vezes desenfreado, de leis de incentivo, especialmente em tempos de crise e ajuste fiscal, como o que vivemos.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Cf. CORREIA NETO, Celso de Barros. O Avesso do Tributo. São Paulo: Almedina, 2014.
[2] ADI 2688. Relator Min. Joaquim Barbosa. Julgamento em 1.6.2011; ADI 2345. Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento em 30.06.2011.
[3] ADI 3462/PA. Relatora Min. Cármen Lúcia. Julgamento em 15.9.2010.
[4] Ver, por exemplo, a Lei n. 12.431/2011, que resultou na conversão da MP 517/2010, objeto da ADI 4646, em tramitação no STF.
[5] RE n. 399667. Relator Min. Joaquim Barbosa. Julgamento em 18.10.2011.
[6] Nesse sentido, por exemplo: ADI 1.247. Relator Min. Dias Toffoli. Julgamento em 1.6.2011; ADI 2376. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento em 1.6.2011; ADI 286. Relator Min. Maurício Corrêa. Julgamento em 22.5.2002; BRASIL. ADI 2.722. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 22.11.2006; ADI 3.312. Relator: Ministro Eros Grau. Julgamento em 16.11.2006.
[7] Cf. SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Alexandre Coutinho da. Competência tributária, transferências obrigatórias e incentivos fiscais. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando; BRAGA, Carlos. Federalismo fiscal: questões contemporâneas. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.

Fonte: Revista Eletrônica Conjur

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