Nesses vastos anos de advocacia criminal e de academia, temos acompanhado de perto a expansão do Direito Penal no Brasil. Em verdade, as leis penais vêm sendo utilizadas para resolver de forma rápida anseios da população em relação à segurança pública — resposta essa perfeitamente cabível para tempos de imediatismo. Um dos pontos muito criticados pelos brasileiros era a impunidade dos poderosos que cometiam os chamados crimes de colarinho branco, por ficarem à margem da justiça. Diante de tal alegação, surgiu então a interpretação jurisprudencial sobre teorias estrangeiras sem que houvesse uma análise profunda, o que acarretou em um transplante de órgãos em sujeitos incompatíveis, se assim nos permitem reduzir o ocorrido[1].
Uma das teorias literalmente transplantadas é o que denominamos de cegueira deliberada — ou Willful (Wilful, em inglês britânico) Blindness[2]. Em apertada síntese, a doutrina referida propõe a equiparação, atribuindo os mesmos efeitos da responsabilidade subjetiva, dos casos em que há o efetivo conhecimento dos elementos objetivos que configuram o tipo e aqueles em que há o “desconhecimento intencional ou construído” de tais elementares. Extrai-se tal conclusão da culpabilidade, que não pode ser em menor grau quando referente àquele que, podendo e devendo conhecer, opta pela ignorância.[3]
Acompanhamos a utilização da teoria no julgamento da Ação Penal 470[4]. À época, levando-se em conta o precedente mais acertado da Suprema Corte norte-americana, o Supremo Tribunal Federal divergiu dos EUA na aplicação da teoria, uma vez que, não basta, para a corte suprema deste último “a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa”, devendo, em verdade, haver “atos deliberadamente voltados à manutenção da ignorância”[5].
Se a doutrina da cegueira deliberada fosse utilizada da maneira proposta pelo STF, estaríamos diante de um imbróglio jurídico, já que uma pessoa não escolhe saber sobre um ilícito, e tal escolha iria contra os dois outros princípios apontados pelo Supremo. Ao exigir indiferença quanto ao “conhecimento”[6], já se parte desse pressuposto, logo, desnecessária a utilização da teoria da cegueira deliberada, uma vez que, havendo conhecimento, não há porque equiparar-se a alegação à assunção de risco. O que uma pessoa escolhe é confirmar ou não uma desconfiança que possui, e daí que os atos de evitar tal confirmação é que podem ser levados à equiparação de dolo eventual aplicando-se a teoria aqui descrita.
Talvez uma das principais teses do escalão superior investigado na operação lava jato seja o desconhecimento do que vinha ocorrendo. De que não era possível saber que os contratos eram superfaturados e que, após isso, os valores obtidos eram reciclados e aproveitados pelos envolvidos no esquema. Ou seja, que toda essa operação servia para macular a origem delitiva dos valores obtidos ilicitamente, fato esse que se traduz no delito de lavagem de dinheiro.
O problema é que, ao contrário da posição da Suprema Corte americana, o entendimento do 2º Circuito de Nova Iorque[7] optou por excluir a necessidade de demonstração por parte da acusação de “atos positivos voltados a evitar o conhecimento”. Logo, a tese do desconhecimento pode ser equiparada à assunção do risco, ou seja, o sujeito que ignora deliberadamente a origem delitiva dos valores obtidos assume o risco de cometer o delito de lavagem de dinheiro.
A teoria da cegueira deliberada, seguindo-se seus níveis de aplicação sobreditos, equipara a alta desconfiança ao conhecimento, abrindo caminho ao dolo. Em nosso ordenamento, a modalidade aplicada seria então o dolo eventual (o sujeito assume o risco) quando considerou seriamente e aceitou como altamente provável que o dinheiro tinha sua origem num delito previamente realizado. Dentro dessas hipóteses se incluem os comportamentos de “cegueira” ou “ignorância” deliberada e permitem que se condenem os sujeitos que não tomaram a devida cautela quando deveriam ter se informado sobre os fatos que estavam sob sua responsabilidade.
Admitindo-se o dolo eventual na lavagem de dinheiro, posição esta que parece estar sendo assumida em razão da alteração ocorrida em 2012, permite-se a aplicação do dolo eventual aos sujeitos que deixam de se informar e assumem o risco de praticar o delito. Porém, isso não significa que todos que tinham conhecimento serão responsáveis, pois cada caso deverá ser analisado individualmente. As declarações de alguns investigados de que não sabiam do que estava ocorrendo nos contratos superfaturados cai por terra quando aplicada a lei de lavagem de dinheiro e a teoria da cegueira deliberada.
Diante do exposto, com novos posicionamentos adotados nos EUA e com a posição adotada no acórdão da Ação Penal 470, julgamos prudente uma nova análise das teses de desconhecimento utilizadas no Brasil, eis que podem ser revertidas e colocadas no campo da ignorância deliberada. Em verdade, empresários, políticos e diretores estão vivendo a aurora de um novo grau de comprometimento, que passará a exigir maior controle não somente de suas atividades, mas de tudo que ocorre no governo ou organização.
[1] Lênio Streck vem defendendo acertadamente aqui na ConJur a necessidade da volta da doutrina, atualmente amordaçada e mera repetidora das decisões dos tribunais. Deixou-se de criar um estudo sobre determinado ponto no Direito Penal, havendo uma inversão no ciclo natural, que trazia doutrinariamente do exterior uma questão e a adaptava ao Brasil, para então ser incorporada na jurisprudência, e, ao final, na legislação pertinente.
[2] Também chamada de Ostrich Instruction, que, em tradução literal, significa as “instrução da avestruz”, remetendo ao ato do animal de esconder sua cabeça quando em situação de perigo. A teoria tem origem nas cortes inglesas, principalmente no caso Regina v. Sleep, no qual o juri condenou o réu por estar em posse de produtos navais que estavam marcados com símbolo que deixava clara a propriedade do governo. O júri entendeu que o acusado não detinha conhecimento da marca, mas possuía “razoáveis meios” de obter o conhecimento. Muito embora a decisão fora reformada, tal julgamento deu início ao uso da teoria nas cortes do sistema Common Law. IRA P. ROBBINS. The Ostrich Instruction: deliberate ignorance as a criminal mens rea, 81 J. CRIM. L. & Criminology, n. 191, p. 196, 1990.
[3] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La responsabilidad penal del testaferro en delitos cometidos a través de sociedades mercantiles: problemas de imputación subjetiva. InDret. Revista para el Análisis del Derecho, Barcelona, n. 3, jul. 2008. Disponível em: <http://www.raco.cat/index.php/InDret/ article/viewFile/124290/172263>.
[4] “Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa.”
[5] First, the defendant must subjectively believe that there is a high probability that a fact exists. Second, the defendant must take deliberate actions to avoid learning of that fact. These require- ments give willful blindness an appropriately limited scope that sur- passes recklessness and negligence. Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A.
[6] Partir do pressuposto do conhecimento torna inócua a aplicação da teoria da cegueira deliberada, que busca justamente equiparar o alto grau de desconfiança aliado a atos voltados à obtenção da certeza ao próprio conhecimento, levando-se à utilização do dolo eventual. O nome da teoria da cegueira deliberada também é de “conscious avoidance”, ou seja, abstenção do conhecimento/consciência, em uma rápida tradução.