Ontem foi aberto o Ano Judiciário no Supremo Tribunal Federal. Ano que promete interessantes debates na corte sobre questões polêmicas e sensíveis em matéria penal, como a possibilidade do principio da insignificância ser aplicado a crimes patrimoniais qualificados[1] e a constitucionalidade da criminalização do porte de entorpecentes para uso próprio[2].
Dentre esses, um chama a atenção: a discussão sobre os contornos da prescrição da pretensão executória no direito penal[3]. A questão pode parecer árida, e excessivamente abstrata, mas sua repercussão para o princípio da legalidade é por demais importante para que deixe de ser compreendida e acompanhada com apreensão.
Antes, alguns esclarecimentos.
A prescrição é a perda do direito do Estado de julgar alguém ou de aplicar uma pena pelo decurso do tempo. O Poder Público, diante da suspeita da prática de um delito, tem um prazo para exercer seu poder punitivo. Não pode manter a ameaça de um processo ou de uma sanção sobre um indivíduo pela eternidade, perenizando a angústia do réu ou investigado. Ou bem julga e executa, ou perde o direito de punir. Como afirmava Aliomar Baleeiro: “não há fomento de utilidade social em punir-se o crime já esquecido”[4]. Em um sentido normativo, Machado aponta que a prescrição decorre da reconhecida ineficácia da pena, nesses casos, para atender ao fim estipulado pela ordem democrática, e “não deve ser aplicada por constituir um violação da dignidade da pessoa humana”[5]
Nosso direito prevê duas hipóteses de prescrição. A primeira, a prescrição da pretensão punitiva, é a perda do direito de julgar alguém pela morosidade do processo. Passado o prazo legal sem que o processo termine[6], extingue-se a punibilidade e os autos são arquivados, preservando-se a primariedade do réu.
A segunda é a prescrição da pretensão executória. Ocorre quando o réu já foi julgado, sentenciado, mas o Estado deixa de iniciar a execução da pena, seja pela fuga do réu, ou seja por qualquer outro motivo similar. Assim, uma vez foragido o réu, e decorrido o período legal, perde-se o direito de aplicar a pena, de sancionar o condenado.
A discussão no STF gira em torno desta última espécie de prescrição, da pretensão executória.
O Código Penal regula esta prescrição em seus artigos 110 e 112. Como dito: uma vez condenado o réu, o Estado tem um prazo para iniciar a execução da pena. Passado o prazo, a punibilidade é extinta.
A questão controversa: a partir de quando se conta tal prazo? A partir de que momento o Estado tem o dever de executar a pena, sob pena de prescrição, da perda do direito de punir?
A lei fixa dois momentos: (i) a partir do “transito em julgado para a acusação” e (ii) do dia em que se “interrompe a execução”[7]. O que importa, no presente caso, é a primeira hipótese: o prazo de prescrição começa a correr a partir da data em que o réu é condenado e a acusação se conforma com a pena fixada, deixando de questionar sua extensão. A partir desse momento, a pena transitou em julgado para a acusação, que dela não pode mais recorrer. Nesse instante, ou o Estado inicia a execução da pena, ou começa a correr o prazo prescricional.
O problema concreto surge nos casos em que a defesa recorre desta condenação. Nesse caso, a pena transita em julgado para a acusação, mas não para a defesa. A pena não pode mais ser aumentada, mas pode ser reduzida ou extinta, caso o réu ganhe seu recurso.
Nessa situação, segundo decisão conhecida do STF (HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau), o Estado não pode iniciar a execução da pena em homenagem ao principio da presunção da inocência. Se existe um recurso da defesa, a condenação não é definitiva, e enquanto ela não for definitiva, a sanção não pode ser aplicada. No entanto, segundo a lei, começa a correr o prazo de prescrição da pretensão executória. Assim, a partir do trânsito em julgado para a acusação o Poder Público deveria executar a sanção, sob pena de perder seu direito de punir. Por outro lado, não pode iniciar esta execução antes do julgamento final do recurso da defesa e da condenação irrecorrível.
Diante disso, alguns tribunais tem entendido que a prescrição da pretensão executória não tem início no momento do trânsito em julgado para a acusação, mas apenas quando a decisão é definitiva para ambas as partes, quando se torna irrecorrível para todos. Como apenas a partir desse momento o Estado pode executar a pena, seria legítimo que o prazo de prescrição começasse a correr somente nesse instante. Não seria possível penalizar o Estado por inércia se a ele não é conferido o poder de agir.
A construção parece correta sob a perspectiva lógica. Mas esbarra em um obstáculo intransponível: a lei. Como dito, o Código Penal é claro ao fixar o inicio do prazo da prescrição: o trânsito em julgado para a acusação. Não há lacuna, dúvida, zona cinzenta onde exista um espaço de interpretação. É o teor literal, claro expresso.
Em direito penal, a legalidade é a âncora do sistema, da segurança jurídica. É o antídoto contra o arbítrio. Von Lizst, no século XIX, já apontava que o Código Penal é a carta magna do criminoso, pois fixa os limites da atuação estatal[8]. Por mais grave e intolerável que seja uma conduta, os contornos de sua punição serão sempre aqueles previstos na lei. Para Hassemer, o princípio da legalidade se converteu em um dos símbolos mais característicos do Estado de Direito, no qual se concentram as esperanças de que tanto o sistema penal seja transparente, controlável e sincero[9].
Sob esse prisma deve ser analisada a questão posta. A norma sobre prescrição é de direito penal material, sobre a qual incide, com toda a força, o limite da legalidade. Em tal campo, inadmissível a analogia, a extensão dos efeitos legais para além dos contornos literais, muito menos a interpretação contrária ao sentido expresso dos dispositivos.
Assim, por mais que as regras legais da prescrição executória estejam equivocadas e mal redigidas — e ao nosso ver estão — ainda assim, é a lei. Mais: é a lei penal. Se ela é falha, que o legislador seja instado a modifica-la, aprimorá-la. A desconsideração de seu texto, ainda mais em prejuízo do réu, não parece a melhor saída para corrigir seus defeitos.
Não se sustente que a redação legal sobre a prescrição executória contraria o direito de punir, previsto na Constituição. Os dispositivos que tratam do tema, ainda que sejam problemáticos, não impedem a punição, mas apenas a postergam ou a tornam mais difícil em certos casos, quando a morosidade do próprio Estado em julgar o recurso da defesa acaba por extinguir a punibilidade.
Mais uma vez, não se trata aqui de defender o texto legal ,que apresenta problemas claros. Se trata, antes de tudo, de evitar um perigoso precedente de relativização da legalidade penal contra o réu. Um precedente, sem dúvida, bem intencionado, de boa fé, voltado para um objetivo correto. Mas um precedente que enfraquece a ideia de legalidade, que pode ser citado no futuro, para justificar decisões arbitrárias de um tribunal talvez menos comprometido com os valores democráticos do que o atual. Admitir a interpretação contra legem, em desfavor do acusado, é abrir uma porta talvez sensível demais em um Estado de Direito jovem demais.
Como dizia Beccaria, “a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõe”. E o maior deles é a legalidade. Deixá-la em pé é a maior defesa institucional contra riscos aventureiros e totalitários, que, se não estranhos ao nosso passado, deveriam ser inadmissíveis em nosso futuro.
[1] Discussão nos autos do HC 123734, com julgamento suspenso, de relatoria do e.Ministro Roberto Barroso, cujo voto em favor da necessidade da observância da razoabilidade e da proporcionalidade da incidência do direito penal nestes casos é digno de nota, proferido em 10.12.2014.