O Supremo Tribunal Federal vem de decidir quatro questões que mostram como o sistema tributário nacional tem sido implementado de forma injusta e inconstitucional, contribuindo a legislação para estorvar a liberdade no país e empatar o desenvolvimento nacional.
No julgamento do RE 567.935 o STF entendeu que o valor dos descontos incondicionais não integra a base de cálculo do imposto sobre produtos industrializados (IPI). A par de declarar a inconstitucionalidade formal do parágrafo 2º do artigo 14 da Lei 4.502/64, na redação dada pelo artigo 15 da Lei 7.798/89, por infração ao artigo 146, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, em conjugação com o artigo 47, inciso II, alínea a, do CTN, ao qual se reserva a atribuição para definir a base de cálculo dos impostos, o relator, ministro Marco Aurélio, destacou que os descontos incondicionais, uma vez concedidos, “repercutem no preço final, o produtor não recebe, mas está compelido a recolher o imposto”. Este último dado é de fundamental importância, pois revela preocupação com a justiça tributária e com a expressão econômica dos fatos geradores (produção, saída) a que deve corresponder a base de cálculo (valor da operação).
No julgamento do RE 240.785 o STF decidiu que o ICMS não compõe a base de cálculo da Cofins, por não ser razoável admitir que o valor de um imposto apenas formalmente, por obrigação legal, arrecadado pelo comerciante ou prestador de serviço e destinado ao Estado integre o conceito de faturamento. Asseverou o ministro Marco Aurélio que “faturamento” envolve, em si, ônus fiscal, como é o relativo ao ICMS, “que não passa a integrar o patrimônio do alienante quer de mercadoria, quer de serviço”. Para lá de uma exacerbação formal do conceito de faturamento, o que a lei fazia era transformar em bônus do contribuinte um recurso do Estado-terceiro, transitoriamente registrado em seus livros fiscais, sem qualquer expressão econômica para ele.
No julgamento do RE 559.937 o STF manifestou-se contrário à inclusão do ICMS, bem como do PIS/Pasep e da Cofins na base de cálculo dessas mesmas contribuições sociais incidentes sobre a importação de bens e serviços, na redação do inciso I do artigo 7º da Lei 10.865/2004, aliás felizmente já alterada pela Lei 12.865/2013. A Constituição admite que as contribuições (com incidências de intervenção na ordem econômica) tenham por base “o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro” (artigo 149, parágrafo 2º, inciso III, alínea a). E o STF entendeu que a lei “extrapolou o aspecto quantitativo da incidência, ao acrescer ao valor aduaneiro o valor dos tributos incidentes, inclusive o das próprias contribuições”. Para além desta questão, novamente formal, ao argumento do Fisco de pseuda isonomia que justificaria assim a exacerbada oneração das mercadorias estrangeiras, destacou o ministro Teori Zavascki que a questão deveria ser equacionada de maneira diferente como, por exemplo, com a redução da base de cálculo das operações internas ou por meio de alíquotas diferentes; ora, sabe-se que ampliação de base de cálculo equivale a aumento de tributo (artigo 97, parágrafo 1º, do CTN).
No julgamento do RE 614.406 o STF entendeu que a alíquota do IR de dívidas salariais recebidas acumuladamente deve ser a correspondente ao rendimento tributado como se fora recebido mês a mês (regime de competência), e não aquela que incidiria sobre valor total pago de uma única vez (regime de caixa), e, portanto, mais alta. Para a ministra Cármen Lúcia, a observância dos princípios da capacidade contributiva e da isonomia impõe a incidência das “alíquotas vigentes na data em que a verba deveria ter sido paga, observada a renda auferida mês a mês (…), não sendo nem razoável nem proporcional a incidência da alíquota máxima sobre o valor global, pago fora do prazo, como ocorre no caso”. E o relator (Marco Aurélio) lembrou que seria suma injustiça alguém ser privado dos seus rendimentos oportuno tempore, ter que ir a juízo e ainda ser supertributado pela alíquota-topo da tabela progressiva do IR; é que, aduza-se, diferentemente do que decorreria da aplicação de todas as alíquotas respectivas, a tributação assim ilegítima gravaria com alíquota maior menores faixas de rendimentos que correspondem a menor capacidade contributiva.
Louve-se o novo olhar material que se entrevê nessas recentes decisões do STF. Uma abertura para a realidade concreta de uma tributação que flerta com a legalidade para desdenhar da justiça. Nas patologias legislativas de que se trata procurou-se sempre a tecnicalidade formal da manipulação da base de cálculo para forjar aumento material de tributo incompatível com o fato gerador, de que aquela deve ser fiel expressão econômica[1].
Implícito nos três primeiros acórdãos acima, explicitou-se com toda a força no último julgado o cardeal princípio da capacidade contributiva, expressão jurídico tributária da igualdade, requisito de estruturação de dever fundamental da Cidadania para cujo atendimento o Estado se organiza.
A conceituação do princípio como pressuposto da tributação e como critério de graduação e limite do tributo[2] decorre dos seus sentidos absoluto e relativo, sem o que não se dá consequência financeira à dignidade humana, nem se garante a propriedade contra o efeito confisco da pressão fiscal desmedida. Os impostos não podem aniquilar a capacidade econômica dos contribuintes[3].
Deduções pífias transformaram o imposto de renda das pessoas físicas em imposto sobre rendimento; o amesquinhamento da sua necessária progressividade aproxima faixas de riqueza ao invés de extremá-las, por tabela que clama por atualização séria. A tributação indireta (IPI e ICMS) em face dos remédios e da cesta básica, por exemplo, grava quem não demonstra capacidade contributiva ao prover à própria subsistência.
No sistema tributário nacional encontram-se equívocos, irracionalidades e injustiças a merecer reparo: a proclamada preferência pela tributação pessoal (artigo 145, parágrafo 1º) conflita com o elenco de impostos nominados (artigos 153, 155 e 156) em larga maioria de natureza real, sendo notória a concentração da carga tributária nos impostos reais causando intensa regressividade na pressão fiscal, especialmente sobre os contribuintes de menor capacidade contributiva em desrespeito à dignidade da pessoa humana (o consumo responde por quase 56% do bolo tributário nacional, enquanto a renda e o patrimônio, cerca de 34%[4], grau baixo em comparação com o vigente nos países centrais, onde foi instrumento de democratização); a lei complementar exigida no artigo 155, parágrafo 1º, inciso III, para ensejar a tributação de herança sita no exterior ainda não foi editada, estimulando seletiva ocultação de riqueza; o imposto territorial rural destina-se a combater o latifúndio (artigo 153, parágrafo 4º, inciso I) mas responde por 0,02% da receita tributária federal[5], não sendo crível que haja poucas terras improdutivas no país contra a realidade captada pela normatividade constitucional; a progressividade do imposto sobre a renda é vã — aos R$ 4.463,81 de renda mensal chega-se à alíquota máxima de 27,5%[6]; o imposto sobre ganhos de capital das pessoas físicas não reconhece correção do custo de aquisição[7]); as contribuições PIS-Cofins superpõem-se ao IPI, ICMS e ISS, e fraudam os Fundos de Participação dos Estados e Municípios. São alguns exemplos de omissões e de normação iníqua, que persistem no Brasil e merecem atenção reformadora em sintonia fina com a citada jurisprudência do STF.
Ao avizinhar-se novo momento de discussões em torno da tão imperiosa e reclamada reforma tributária, cabe refletir sobre a sua real dimensão, pois o déficit democrático brasileiro, que se apresenta desde a Colonização e é amplamente analisado pela sociologia e pela ciência política, tem-se reforçado em boa medida na implementação do sistema tributário, na qual muitas vezes se desrespeitam os seus princípios informadores, como o da capacidade contributiva.
A reforma da Constituição pode ser um passo significativo na democratização do Brasil. Tão mais importante sê-lo-á na medida em que melhor atender à epistemologia conformadora do direito tributário em garantia dos direitos fundamentais, em que pontifica o princípio da capacidade contributiva, vetor ético jurídico de correção de rumos em favor da justiça fiscal. Se assim não for, de esperar que o STF prossiga na evolução de sua jurisprudência que haverá de fazer prevalecer o espírito constitucional que deflui dos valores e princípios que a informam.
[1] Cf. Amílcar Falcão. O fato gerador da obrigação tributária. 4ª ed., RT: São Paulo, 1977, p. 138.
[2] Cf. nosso Direito Tributário. Capacidade contributiva. 2ª ed., Renovar: Rio de Janeiro, 1998, p. 12-13, 42.
[4] Dados de 2011, cf. estudo do Professor Evilasio Salvador, da Universidade de Brasília, in http://www.inesc.org.br/noticias/biblioteca/textos/as-implicacoes-do-sistema-tributario-nas-desigualdades-de-renda/publicacao/.