A Lei Anticorrupção como lei penal encoberta

Mais uma vez tratamos da Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção). Das muitas questões levantadas sobre ela, destacamos uma que tem merecido especial atenção: qual a real natureza desta norma? Trata-se de uma lei meramente administrativa ou há elementos de direito penal material em seus dispositivos? A indagação — longe de ser meramente acadêmica — tem aspectos práticos relevantes, como mostram as seguintes considerações.

A lei apresenta-se como norma administrativa. Talvez o legislador não tenha definido os comportamentos ali descritos como crimes, nem as sanções como penas, para afastar problemas de constitucionalidade. Isso porque a norma destina-se a pessoas jurídicas e, nesta seara, há quem refute a adequação constitucional da criminalização destes entes1, ou que limite tal hipótese aos âmbitos expressamente previstos na Carta Maior: atos contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular (Constituição Federal, artigo173, parágrafo 5º) ou contra o meio ambiente (Constituição Federal, artigo 225, parágrafo 3º).

Para além disso, a lei trabalha com a responsabilidade objetiva, forma de imputação inconcebível na seara penal, ao menos em um ordenamento jurídico no qual a pena se assenta na culpabilidade.

Por isso, e talvez para evitar tais questionamentos, o legislador classificou as normas previstas na lei em comento como administrativas, afastando-a do terreno penal e das polêmicas que sempre o rondam.

No entanto, uma análise mais apurada do texto legal revela que, seja qual for o escopo do legislador, os comportamentos descritos e as consequências a eles atreladas, embora formalmente intitulados como “administrativos”, têm substância penal, ou quase penal2. Não se quer — nos estreitos limites deste texto — discutir os limites quantitativos ou qualitativos que marcam a fronteira entre o direito penal e o administrativo3. Porém, uma rápida e superficial análise revela o quanto do primeiro há nos atos ilícitos e nas sanções previstas na Lei 12.846/13.

Quanto aos atos ilícitos, quase todos têm correspondente na seara criminal, com uma ou outra distinção peculiar. O artigo 5º da lei, por exemplo, elenca a prática ou o financiamento da corrupção ativa, o uso de interposta pessoa para ocultar interesses ou beneficiários dos atos ilícitos e a fraude à licitação, cujos correspondentes penais são conhecidos.

Quanto às consequências/sanções, sua extensão e gravidade são equiparadas às penais. Uma breve passagem de olhos pelas sanções penais aplicáveis às pessoas jurídicas previstas na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) demonstra que estas são mais brandas do que as instituídas pela lei pretensamente administrativa de combate à corrupção. Na primeira, a consequência mais grave é a interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, ou a proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (artigo 22). Na segunda, a infração aos seus preceitos pode ensejar, além das mesmas sanções, o perdimento de bens e da dissolução compulsória da pessoa jurídica.

Isso significa que, independente do nome dado pelo legislador, a gravidade ou extensão das sanções previstas na Lei 12.846/13 corresponde ou ultrapassa aquelas previstas em normas expressamente incriminadoras. Há um caráter de lei penal encoberta na norma em discussão.

Não cabe aqui discutir quais as implicações disso para a sua constitucionalidade. O que importa é destacar que, quanto mais nítido o caráter sancionador da lei — que no caso concreto se equipara à sanção penal —, mais legítimo exigir que algumas garantias do direito penal e do processo penal sejam reconhecidas quando de sua aplicação4.

Nessa linha, inúmeras questões concretas podem ser levantadas, a começar pelos parâmetros para a interpretação da Lei Anticorrupção. Sua natureza penal, ou quase-penal, impede a analogia ou o recurso a fontes que extrapolem o teor literal dos dispositivos. Assim, por exemplo, quando a lei fixa como ilícito o “uso de interposta pessoa jurídica para dissimular reais interesses ou a identidade dos beneficiados dos atos praticados” (artigo 5º, III), a sanção somente poderá recair sobre aquele que usa a pessoa jurídica interposta e não sobre a própria pessoa jurídica interposta. Talvez essa não tenha sido a ideia do legislador, talvez pretendesse responsabilizar também a pessoa jurídica usada, mas uma interpretação que não violente o conteúdo semântico dos termos empregados na lei, — única possível para textos penais e similares — impede tal extensão.

Do lado processual, o direito de não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) deve ser reconhecido na aplicação da lei. Diante de uma investigação para apuração da eventual prática dos ilícitos nela previstos, a empresa pode optar por não colaborar com as investigações, não podendo, por isso, ser penalizada. Daí a inaplicabilidade, em tal circunstância, do ilícito descrito no artigo 5º, inciso V (“dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”). Deixar de entregar documentos ou de responder a ofícios é direito da empresa, de forma que o inciso V mencionado somente será aplicável se a instituição praticar fraude processual ou ato similar, ou se a empresa que dificulta não for a investigada ou suspeita, mas outra que possui dados ou informações relevantes.

Essas questões, que evidentemente dependem de reflexão mais apurada e até mesmo de situações concretas para melhor análise, servem de alerta os responsáveis pela aplicação da lei, dos advogados às autoridades públicas, pois esse caráter penal, ou muito próximo do penal, que ostenta a norma em comento, traz consigo a necessidade da observância e do respeito aos limites inerentes às normas de caráter repressivo. Do contrário, bastará transformar crimes e penas em ilícitos administrativos para deixar de lado todas as garantias que a custo tornaram-se indispensáveis em um direito penal ambientado em um Estado Democrático de Direito.


1Sem contar os inúmeros autores que entendem inconstitucional qualquer responsabilização criminal da pessoa jurídica. Nessa linha, REALE JR., A responsabilidade penal da pessoa jurídica, in PRADO, Luis Regis (org.) Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: RT, 2001, p.139. Na mesma obra, LUISI, Luis. Notas sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, p.99.
2Nessa linha, SCAFF, Fernando Facury e SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Lei anticorrupção é substancialmente de caráter penal. Conjur, 05/02/2014
3Sobre o tema, ver GRECO FILHO, Vicente e RASSI, Joao. A corrupção e o direito administrativo sancionador. In PASCHOAL, Janaina Conceição e SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, Livro Homenagem a Miguel Reale Jr., p.741 e ss.
4Nessa linha, OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 3ª ed., São Paulo: RT, 2009, p.383 e ss. Embora negue a identidade entre direito penal e direito administrativo sancionador, COSTA reconhece a exigência de normas mais rigorosas para o direito administrativo sancionador, pois este não deixa de ser uma imissão estatal na esfera de direitos fundamentais. COSTA, Helena Regina Lobo da, Direito Penal Economico e direito administrativo sancionador. Tese de livre-docência USP.

 

 é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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