A coluna deste sábado é em parceria. O tema merece. E o título é uma provocação a partir da qual se propõe, mais uma vez, refletir a respeito do modo como a teoria jurídica de Robert Alexy vem sendo aplicada por aqui. Na última semana, o renomado jurista alemão retornou ao Brasil, desta vez à Universidade do Oeste de Santa Catarina, onde recebeu o título de doutor honoris causa e ministrou três conferências em seminário voltado à discussão de sua obra.
O evento tinha como principal objetivo a compreensão, a partir do próprio autor — uma espécie de voluntas auctor —, dos pilares teóricos de sua teoria dos direitos fundamentais. O debate contou com a presença de importantes nomes do direito brasileiro que adotam – de um modo ou de outro – as ideias de Alexy e que, na ocasião, tiveram a oportunidade de dialogar com o jurista alemão.
Infelizmente não pudemos prestigiar o evento, mas recebemos em primeiríssima mão o relato do professor doutor Fausto Santos de Morais — a quem, desde já, agradecemos pela parceria —, que é um dos maiores estudiosos da teoria de alexyana na atualidade. Assim, considerando a importância dos temas abordados e, sobretudo, o teor das respostas formuladas por Alexy, aproveitamos o espaço desta coluna para difundir um breve balanço do que foi discutido. Afinal, este é precisamente um dos compromissos deste Diário de Classe.
Ao contrário da sua última visita ao Brasil, em outubro de 2013, quando se limitou a apresentar sua fórmula do peso, desta vez, Alexy surpreendeu o público por vários motivos. Segundo Fausto, três foram as questões que chamaram atenção e merecem uma reflexão mais aprofundada: a) a rigorosidade conceitual que Alexy confere à Ciência do Direito; b) o problema da aplicação da sua teoria no Brasil; c) o ataque à hermenêutica filosófica, de Gadamer, e à coerência, de Dworkin.
Logo na conferência inaugural, Alexy mostrou a ênfase depositada num modelo analítico que oriente a Ciência do Direito. Para ele, sua teoria dos direitos fundamentais busca, analiticamente, apresentar o modelo de aplicação dos direitos fundamentais realizado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht). Assim, o papel da Ciência do Direito seria o de precisar, rigorosamente, os conceitos empregados nas decisões da Corte alemã, identificando os modelos normativos que representam o direito positivo. Desse modo, o tratamento conferido pela dogmática à jurisprudência retroalimentaria o conhecimento dos limites normativos do Direito. Sobre este tema, Alexy foi bastante enfático: não existe conhecimento jurídico sem rigorosidade conceitual. Mais do que isto, afirmou: “a falta dessa rigorosidade me deixa furioso”. Aqui, já podemos indagar: apesar desse rigor, a análise de Alexy das decisões do Bundesverfassungsgericht não aponta para equívocos feitos por aquele tribunal. Isso apenas para começar porque o tema merece uma coluna própria.
Outro problema decorre da aplicação da proporcionalidade no Brasil, como um destaque a ser feito. Ou melhor, os problemas. O primeiro delas seria a falta de rigorismo conceitual e operacional da proporcionalidade. O segundo remete à rudimentar relação entre teoria e prática. O terceiro, e certamente o mais grave dos problemas, diz respeito à falta de racionalidade verificada nas decisões judiciais.
Como se sabe, no Brasil, a aplicação da proporcionalidade tornou-se uma vulgata (leia aqui). Essa vulgata nasceu na doutrina pátria que importou, parcialmente, a teoria de Alexy e piorou quando os tribunais passaram a utilizar o argumento da proporcionalidade sem qualquer tipo de critério. A partir de então, proliferaram-se os trabalhos que se utilizam do “princípio” da proporcionalidade na condição de suporte central da tese para o desenvolvimento científico-jurídico dos mais diversos direitos fundamentais. Aliás, proporcionalidade e ponderação passaram a andar sempre juntas, como se fossem gêmeas siamesas. Disso resultam, costumeiramente, dois outros problemas: primeiro, o sentido da proporcionalidade assume a direção que o intérprete quer dar, independentemente da proposta de sistematização reclamada por Alexy, o que exige “testes” diferentes quando se tratam de direitos de liberdade e direitos prestacionais; segundo, esquece-se que estes “testes” da proporcionalidade são apenas estruturas formais do pensamento. Como disse o próprio Alexy, o procedimento argumentativo não envolve, por si só, os necessários elementos materiais que devem fazer parte da justificação racional e legítima.
Na jurisprudência, por sua vez, os abusos são ainda maiores, o que torna o cenário ainda mais caótico, uma vez que todo rigor científico proposto por Alexy vai por água abaixo. Como num passe de mágicas, de repente, todas as questões jurídicas a serem resolvidas passam a envolver uma colisão de princípios. A justificação racional e legítima perseguida por Alexy reduz-se a petições de princípios e à referência meramente retórica do “princípio da proporcionalidade”. Em tempo: Alexy ratificou, novamente, que a proporcionalidade é uma regra — e, portanto, deve ser aplicada como tal —, embora “com nome de princípio” (sic).
Ainda sobre a escatologia da justificação racional das decisões judiciais que ponderam princípios, teria sido impressionante a reação de Mathias Klatt (discípulo de Alexy) quando tomou conhecimento de que o Supremo Tribunal Federal, ao exercer a função de corte constitucional, não apresenta um parecer decisório único e dialogado, mas compõe a deliberação com a soma de votos dos ministros, muitas vezes, completamente contraditórios entre si. Um clássico exemplo desse problema são os votos proferidos na decisão do famoso caso Ellwanger (HC 82.424/RS). Ocorre que, na soma, nem sempre, vence o melhor argumento racional. Pois é. De há muito denunciamos isso por aqui em terrae brasilis. Marcelo Cattoni foi o primeiro a levantar essa lebre depois do caso Elwanger.
Aliás, é importante deixar claro que é muito difícil saber em que sentido a proporcionalidade é empregada pelo STF e, igualmente, se as suas decisões atendem à exigência de justificação racional reclamada por Alexy. Também é impossível saber em que sentido o STF emprega a ponderação. Essa questão da (ir)racionalidade das decisões tomadas a partir da aplicação da proporcionalidade é, precisamente, o problema enfrentado na tese de doutorado do Fausto, a ser publicada muito em breve, em que ele faz uma contundente crítica à jurisprudência do STF.
O mais impressionante, ao menos a nosso ver, fica por conta do ataque alexyano à hermenêutica, no finalzinho do evento — aqueles que saíram antes perderam esta parte —, após ser questionado pelo professor Rogério Gesta Leal sobre o modo como sua teoria se relaciona com outras — mais especificamente aquelas que se valem dos aportes teóricos de Gadamer e Dworkin —, no que diz respeito ao enfrentamento do problema da racionalidade nas decisões judiciais.
Para ele, a hermenêutica não basta para o Direito. Muito embora reconheça que o círculo hermenêutico é inafastável, Alexy acredita que, tal como teria feito Gadamer em Wahrheit und Methode, a hermenêutica colocaria inúmeros pontos de vista para um problema, sem dar a solução e teorizá-la com o rigor necessário. Rigor, aqui, significa a possibilidade de se estabelecer, analiticamente, uma fórmula lógico-matemática como passo inicial para a fundamentação racional da decisão judicial.
Tal resposta evidencia o déficit filosófico que atravessa a teoria alexyana. Tudo indica que o jurista alemão não compreendeu os avanços que o giro ontológico-linguístico produziu sobre a questão do “método”. Isto porque, na hermenêutica filosófica, o que está no centro da reflexão é a relação intersubjetiva que é condição de possibilidade para todo conhecimento. É por isso que se fala em ser-no-mundo, por exemplo. E também é por isto que, para a hermenêutica, o Direito não pode operar apenas no plano argumentativo. Observa-se, assim, que Alexy ignora a dobra da linguagem e, consequentemente, do discurso jurídico. A crítica, absolutamente apressada e equivocada, de Alexy à hermenêutica vai no mesmo nível de quem confunde a hermenêutica com qualquer teoria relativista, esquecendo que Gadamer odiava que confundissem a hermenêutica com qualquer apego à irracionalidade. Verdade contra o Método não quer dizer “estado de natureza ou relativismo”. Ao contrário: se Deus morreu, agora é que não podemos fazer qualquer coisa!
Em relação à exigência de coerência, nos termos propostos de Dworkin em sua teoria do Direito como integridade, Alexy entende que não existe um critério unívoco para tal finalidade, de maneira que “os critérios de coerência poderiam ser ponderados” (sic). Eis, de novo, o principal problema de Alexy. Para ele, tudo pode ser ponderado! E isto é ainda mais problemático no Brasil, onde sequer se presta atenção àquilo que Alexy chama de princípios formais, mais resistentes à ponderação. Em suma, a coerência não faz sentido para Alexy porque o seu modelo jurídico é composto por princípios jurídicos — mandados de otimização que sequer são deontológicos —, e não por questões de princípio. Entre essas duas concepções existe uma diferença que é abissal. Isto porque, quando se está diante de uma questão de princípio, o intérprete não tem a sua disposição um repositório de princípios ponderáveis. Alexy desconhece que decisão jurídica não é escolha. O intérprete (juiz) não está livre porque possui uma responsabilidade político-jurídica. É a necessidade de coerência que faz com que o jurista se lembre de que ele não está sozinho no mundo. Por isto, ele precisa conhecer (e bem) as questões de princípio de uma ordem jurídica compromissada com o Estado Democrático de Direito, por exemplo.
Este rápido balanço permite concluirmos duas coisas. Primeiro que é preciso estudar mais o que diz Alexy para se combater o uso de Alexy que se faz no Brasil. Algo do tipo: Alexy contra Alexy. Com isto, colocar-se-ia um fim à aplicação de uma teoria alexyana darwinianamente-mal-adaptada, em que os princípios tornaram-se verdadeiros álibis teóricos na medida em que passaram a ser empregados como enunciados performativos que se encontram à disposição dos intérpretes para que, ao final, decidam de acordo com sua vontade.
Segundo, e mais triste, precisamos mostrar e dizer que é impossível fazer Teoria do Direito sem Filosofia. Pelas críticas superficiais feitas por Alexy a Gadamer, fica nítido que ele quer fazer teoria sem filosofia. Em Alexy, parece que está proibido falar em paradigmas filosóficos. Nele, por exemplo, discricionariedade parece ser uma coisa natural e que nada tem a ver com o paradigma da filosofia da consciência (ou suas vulgatas voluntaristas). Sua apreciação filosófica parece ter ficado no neopositivismo lógico e na relação sintaxe-semântica-pragmática, com alguma ênfase na tentativa de racionalização da pragmática.
Mais ainda, tudo está a indicar que Alexy não se dá conta de que Gadamer trabalha em um nível e as teorias analíticas — como a teoria da argumentação jurídica por ele proposta — em outro nível, o da mera justificação (que, na hermenêutica, se chama de nível apofântico da linguagem).
Por isso, não é fácil falar de Teoria do Direito. Por vezes, escapar desse imbróglio com uma linguagem lógica de segundo nível, herdada do neopositivismo, parece ser um caminho (quiçá um atalho) mais fácil para fugir da coisa mais importante na interpretação: o plano compreensivo, que sempre antecede a mera justificação. E disso Alexy não quer saber, bastando para tanto ver o que ele disse de (e sobre) Gadamer, desqualificando, com poucas frases, toda a obra do mestre de Tübingen.
Numa palavra: se é verdade que a argumentação é importante para o processo de aplicação das normas jurídicas, é preciso reconhecer que não se faz direito sem hermenêutica. E isto é incontornável, mein Freund.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2014