Livro expõe bastidores e personagens da guerra fiscal

O Brasil está longe de sofrer as agruras decorrentes dos conflitos territoriais que assolam várias regiões do mundo. Mas convive com uma batalha silenciosa, pouco explorada pelos jornais diários, mas quer tira o sono de advogados públicos e privados, que atuam, uns na defesa dos cofres estaduais, outros, dos interesses de grandes clientes. É a chamada “guerra fiscal”, expressão que sintetiza o conflito e que coloca em lados opostos estados que buscam aumentar suas receitas tributárias e outros não menos empenhados em evitar perdas significativas na arrecadação. No centro da disputa, existe uma montanha de dinheiro envolvido em complexas discussões de natureza nem sempre jurídica, mas que quase sempre desembocam no Supremo Tribunal Federal.

Incidência do ICMS nas Operações de Importação, de Luciano Garcia Miguel, coloca o dedo na ferida. O livro vai muito além do título e escancara as origens da “guerra”, identifica os personagens envolvidos, as práticas e os argumentos utilizados, as consequências dessa situação e as tentativas que têm sido feitas para evitar danos ao federalismo consagrado como cláusula pétrea da Constituição Brasileira. A clareza e o rigor na abordagem dos temas contribuem para formar uma radiografia completa do cenário — passado e presente — com a visão de quem participa diretamente dos embates. Mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP, e professor do Instituto Brasileiro de Direitos Tributários, Luciano Garcia Miguel é, também, diretor da Consultoria Tributária da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo.

No livro, ele analisa o perfil constitucional do ICMS, esmiúça o princípio da não-cumulatividade, sua incidência na circulação de mercadorias nas operações interestaduais e o campo de atuação dos estados para fins de atuação tributária. O foco seguinte recai sobre as leis complementares que regulam o tema e as resoluções do Senado, que tem competência constitucional para fixar as alíquotas aplicáveis às operações interestaduais; a estrutura e o funcionamento do Confaz, bem como os convênios relativos a benefícios fiscais, confrontados com as legislações estaduais e com a própria Constituição. Junta em um só lugar, de forma clara e compreensível mesmo para quem não milita na esfera tributária, o que normalmente tem sido objeto de análises isoladas.

Garcia Miguel destaca no livro que, ao contrário do que ocorre com outros tributos, a Constituição, no caso do ICMS, não se limitou a traçar o contorno básico e optou por impor uma severa limitação à competência de legislar dos Estados e do Distrito Federal. Seria de se esperar, segundo ele, que a pessoa política competente para instituir o imposto teria, também, a competência para modular os seus efeitos, determinando, por exemplo, se uma determinada operação contaria ou não com benefícios fiscais, tais como isenção, redução de base de cálculo ou crédito presumido. “Não é o que ocorre com o ICMS”, afirma o autor, lembrando que a Constituição estabelece que tais benefícios somente podem ser concedidos, de forma conjunta, por todos os estados. Para ele, é exatamente o desrespeito à essa imposição básica a causa dos problemas mais graves enfrentados pelos estados na denominada “guerra fiscal”.

Ele também considera importante destacar que, assim como ocorre com todos os tributos sujeitos à regra da não-cumulatividade, que permite que do imposto devido na etapa seguinte seja abatido o que foi cobrado na operação ou prestação anterior, também o ICMS está sujeito aos problemas próprios das transações que tem início em um Estado e são finalizadas em outro. E como a Constituição não deu tratamento uniforme às diversas hipóteses em que há circulação de bens ou mercadorias para outra unidade da Federação, vários estados criaram “programas de benefícios fiscais”, adotando regras próprias com o objetivo de aumentar a arrecadação do Estado onde está situado o importador, em detrimento da diminuição de receita do Estado onde está situado o real destinatário da mercadoria importada.

Para o autor, com raras exceções, as tentativas do Confaz em buscar uma solução para a “guerra fiscal” têm se mostrado infrutíferas, diante da multiplicidade de fatores envolvidos, muitos deles fora da seara tributária — como os reflexos no Fundo de Participação dos Estados (FPE), distribuição dos royalties de petróleo e renegociação das dívidas dos estados com a União, entre outros. “Todos esses fatores estão, de certa forma, interligados, o que explica a dificuldade das negociações entabuladas para resolver a guerra fiscal”, afirma.

Luciano Garcia Miguel insiste que a origem do problema está nos chamados “incentivos fiscais” para operações que envolvem a importação de mercadoria, criados, segundo ele, de forma irregular e com o único objetivo de aumentar a arrecadação. “É, provavelmente, o lado mais pernicioso da guerra fiscal”, afirma, acrescentando que tais benefícios não foram autorizados pelo Confaz. “Na verdade, sequer foram levados à análise do Conselho, uma vez que sua concessão, em regra, é prejudicial às outras unidades da Federação”.

Para ele, é preciso, antes de tudo, definir-se com precisão o que são benefícios fiscais — submetidos à previa aprovação pelo Confaz — e o que são benefícios financeiros. “O benefício financeiro não está vinculado ao tributo, mas à receita tributária. É concedido após o pagamento do tributo, com recursos orçamentários, ao contrário do benefício fiscal, que se caracteriza pela vinculação ao tributo e por ser concedido antes do seu pagamento”, explica. Entre os principal benefícios fiscais aplicáveis ao ICMS, ele destaca a isenção, a redução da base de cálculos e o crédito presumido. Como benefícios meramente financeiros, ele situa as medidas unilaterais que prolongam por até 15 anos o prazo para pagamento do imposto, com juros subsidiados e possibilidade de resgate com o pagamento de apenas 10% do saldo devedor.

É o que ocorre, segundo ele, com o Fundo para o Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap), criado e mantido pelo Estado do Espírito Santo, o mais polêmico programa de benefícios relativos ao ICMS. “Com exceção do Fundap, as operações de importação não faziam parte do roteiro da guerra fiscal. Contudo, nos últimos anos várias unidades federadas, como Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e Santa Catarina, passaram a conceder esse tipo de benefício”, afirma Garcia Miguel. Tanto quanto os efeitos, ele considera fundamental discutir-se a origem dessas causas danosas à Federação. “A restauração desse equilíbrio passa, certamente, por mudanças em regras fundamentais do ICMS, mas, antes de tudo, deve ser fruto de uma mudança de atitude das unidades federativas, que implica no respeito ao pacto federativo e à ordem jurídica estabelecida”, afirma. “Somente assim poderemos dizer que foi escrito e encerrado o último capítulo da guerra fiscal”.

Serviço:
Título: Incidência do ICMS nas Operações de Importação
Autor: Luciano Garcia Miguel
Editora: Noeses
Edição: 1ª Edição — 2013
Número de páginas: 246
Preço: R$ 62,90

Fonte: Conjur

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