O Supremo Tribunal Federal tem carregado ao longo dos últimos anos o pesado fardo de suprir a inércia do Poder Legislativo e por freios na voracidade arrecadatória do poder executivo. Tal como Sísifo, personagem da mitologia grega, o STF rola montanha acima a pesada pedra da solução jurídica adequada à Constituição. Para isso, expõe suas entranhas nos acirrados debates, abrindo ao público o saudável, mas por vezes incompreendido contraditório. Tal como Sísifo, quando atinge seu objetivo, a pedra chega ao topo da montanha, em um átimo, vê seu árduo trabalho ser sabotado, novas medidas são rapidamente engendradas para desfazer aquilo que se conquistou, e a pesada pedra rola montanha abaixo em direção ao chão. E o ciclo, uma vez mais, se reinicia.
A questão da tributação dos lucros de sociedades controladas no exterior é um exemplo paradigmático de “sabotagem arrecadatória” perpetrada pelo poder executivo. Vejamos.
No último dia 10 de fevereiro, foi publicado o acórdão do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.588/DF, que havia sido encerrado em 10 de abril de 2013. Dez meses depois da conclusão do julgamento e há mais de onze anos do seu início[1], o STF torna público os fundamentos dos votos dos ministros que participaram do julgamento, reveladores de uma complexa divergência de opiniões, impeditiva da proclamação de um resultado vinculante em relação a todas as hipóteses de aplicação das normas contestadas, o artigo 74 e seu parágrafo único da MP 2.158-35/2001.
A questão jurídica em discussão relacionava-se com os aspectos essenciais do fato gerador do imposto de renda, tal como previsto pelo artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), que, como se sabe, filiou-se à corrente doutrinária liderada, entre nós, por Rubens Gomes de Sousa, que consagra o conceito de renda como um acréscimo patrimonial jurídica ou economicamente disponível.[2]
Nas palavras do mestre: “‘Renda’ é, para efeitos fiscais, o acréscimo patrimonial líquido verificado entre duas datas predeterminadas. Nesta última frase, a palavra-chave é ‘acréscimo’: com efeito, a característica fundamental da renda (….) é a de configurar uma aquisição de riqueza nova que vem aumentar o patrimônio que a produziu e que pode ser consumida ou reinvestida sem o reduzir”.[3]
Em face dos elementos essenciais do conceito de renda formulado pela lei complementar, a lei ordinária só está autorizada a gravar acréscimos patrimoniais (primeiro elemento), mas não basta a simples existência de um “acréscimo” ao patrimônio do contribuinte para permitir sua tributação, esta só será possível se o mesmo estiver disponível para o contribuinte (segundo elemento), seja do ponto de vista econômico (realização em termos financeiros), seja do ponto de vista jurídico (titularidade jurídica).
O cerne da questão em discussão na ADI 2.588 estava em saber se o artigo 74 da MP 2.158-35/2001 quando estabelece que “os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil, na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento” é compatível com os limites estabelecidos pelo artigo 43 do CTN, especialmente à luz do parágrafo 2º acrescentado pela Lei Complementar 104, de 2000, segundo o qual “na hipótese de receita ou de rendimentos oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará a sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo”.
Ao longo dos mais de dez anos que a questão esteve em debate na Suprema Corte houve uma mutação dos argumentos de defesa do sistema de tributação automática dos lucros de controladas e coligadas no exterior pretendido pelo poder executivo.[4]
A linha de argumentação que ao fim ganhou força sustenta que o resultado positivo da avaliação dos investimentos pelo Método da Equivalência Patrimonial (MEP), consagrado na legislação societária (artigo 248 da Lei 6.404/76) corresponderia ao acréscimo patrimonial exigido pelo artigo 43 do CTN e que sua disponibilidade seria econômica, resultante da contabilização pelo regime de competência.
A esta linha de argumentação da Fazenda, acolhida e capitaneada pelo então ministro Nelson Jobim, no que foi acompanhado na ADI 2.588 pelos então ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ayres de Britto e, em parte, pela ministra Ellen Gracie[5], contrapõe-se a posição sustentada pelos ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Ricardo Lewandovski, Celso de Mello e Joaquim Barbosa para quem “a utilidade do MEP à avaliação do quadro patrimonial da empresa é insuficiente para afastar o requisito constitucional da disponibilidade jurídica da renda proveniente da participação de lucros cuja expectativa é de futura distribuição”[6].
O voto do Ministro Joaquim Barbosa não deixa de reconhecer que a questão do MEP é um “tema árido”, mas a forma direta por ele abordada e, fundamentalmente, avessa às minúcias contábeis e focada nos aspectos jurídicos, põe às claras o caráter de ficção da assimilação do resultado positivo de equivalência a um acréscimo patrimonial disponível:
“E, ao meu sentir, é incorreta a utilização do MEP para suprir essa dissociação entre o marco escolhido para tributação e a disponibilidade jurídica da renda proveniente dos lucros distribuídos (…)
Lembro que a Constituição permite a instituição de imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (art. 153, III da Constituição), não sobre a perspectiva de renda, nem sobre a probabilidade de acréscimo patrimonial. (…)
Evidentemente a possibilidade de deliberar pela distribuição não equivale ao próprio ato de alocar os lucros aos seus pretendentes, isto é, a possibilidade de ordenar o pagamento não significa necessariamente que esse pagamento foi ou será ordenado. (….).
De modo semelhante, se a pessoa jurídica controlada pode legitimamente optar por não distribuir lucros, a circunstância de a empresa controladora ou coligada nacional se submeter ao MEP não autoriza que essa opção seja desconsiderada em prol da arrecadação como um fim em si mesmo”.[7]
Da leitura dos votos proferidos, pode-se constatar que houve um amplo e profundo debate sobre se o resultado positivo de equivalência patrimonial relativo a investimentos em controladas e coligadas no exterior poderia ser objeto de tributação pelo imposto de renda brasileiro, junto à pessoa jurídica controladora ou coligada local. A resposta foi positiva para aqueles que consideraram que esse resultado é um acréscimo patrimonial disponível e negativa para aqueles que consideraram que esse resultado não chega sequer a ser um acréscimo patrimonial real e efetivo e, por maioria de razão, indisponível para o contribuinte.[8]
Meses depois do encerramento do julgamento da ADI 2.588 o poder executivo editou a MP 627, de 11 de novembro de 2013, que revoga o artigo 74 da MP 2.158-35/2001 e dispõe sobre um novo regime de tributação de lucros de empresas situadas em outros países, agora segundo um novo modelo, ainda mais brutal.
Na nova sistemática da MP 627 já não mais se tributa o resultado de equivalência patrimonial das sociedades controladas diretas, mas sim, conforme o artigo 72, “o resultado contábil na variação do valor do investimento equivalente aos lucros ou prejuízos auferidos pela própria controlada direta e suas controladas, direta ou indiretamente, no Brasil ou no exterior”.
Passaram, assim, a ser agora tributáveis no Brasil, independentemente de distribuição, os lucros auferidos por todas as sociedades estrangeiras controladas, diretas e indiretas, e não mais o resultado de equivalência patrimonial, apenas registrável nas controladas diretas.
A voracidade arrecadatória do Fisco brasileiro desconsidera as cadeias de participação societária e atinge diretamente os lucros de toda e qualquer pessoa jurídica situada em quaisquer dos degraus da cadeia de participações. Assim, por exemplo, numa cadeia de participações em que uma controlada direta (A) tem lucros de 50 unidades de valor; uma controlada indireta (B), detida por A, tem, prejuízos de 100; e outra controlada indireta (C), detida por B, tem lucros de 150, no modelo proposto pelo executivo o Fisco brasileiro irá tributar 200 (os 50 de A e os 150 de C), não sendo autorizada a dedução das perdas de B. Sucede, porém, que os lucros potencialmente distribuíveis ao contribuinte brasileiro nunca excederão a 100 unidades, haja vista o necessário abatimento das perdas na linha reta ascendente da cadeia de participações.
Já não se pode mais falar em enxergar no resultado positivo do MEP um acréscimo patrimonial disponível, porque não se está mais a tributar tal resultado, mas algo completamente distinto que é o lucro de terceiros, pessoas jurídicas controladas indiretas situadas em todo e qualquer nível da cadeia de participações de controle.
O STF passou anos discutindo se o resultado de equivalência patrimonial era base adequada de tributação. Talvez diante da divisão de opiniões, e sem querer arriscar sair-se derrotado, o executivo revoga o artigo 74 da MP 2.158-35/2001 e cria um regime ainda mais esdrúxulo, na contramão de todos os países civilizados que apoiam a internacionalização das suas empresas multinacionais.
O Brasil é único país no mundo que adota tal sistema como regra geral de tributação. E sabem por quê?
“Segundo uma fonte graduada do governo ouvida pelo Valor, seria ótimo que o Brasil pudesse isentar de tributos as empresas que investem no exterior, como fazem países europeus e o Japão, ou estabelecer o regime de caixa, exigindo o tributo somente quando o lucro é remetido à matriz, como faz os Estados Unidos. Mas o Brasil tem “suas restrições orçamentárias, financeiras e precisa arrecadar”, diz a fonte”.[9]
Exemplos numéricos do estrago causado pelo atual regime, recentemente divulgados pela imprensa, confirmam o interesse puramente arrecadatório:
“Uma controladora brasileira com subsidiária no Reino Unido, por exemplo, que tiver lucros apenas reconhecidos (registrados no balanço) no Brasil de R$ 100 milhões, pagaria R$ 23 milhões de IR local, mais R$ 11 milhões do imposto no Brasil (34%). Já uma controladora francesa, também com subsidiária no Reino Unido, que tivesse R$ 77 milhões de dividendos efetivamente recebidos na França, pagaria o mesmo IR local e apenas R$ 1,28 milhões de imposto na França (33,33% sobre 5% do total).
Em uma outra hipótese, se a Espanha, por exemplo, concede benefício fiscal e cobra só 14% de IR para atrair empresas de um determinado setor, uma companhia espanhola ou subsidiária de outro país europeu pode aproveitar-se dele de forma integral. Já a brasileira pagaria ainda ao Brasil a diferença em relação à alíquota nacional de 34%, ou seja, 20% para o Fisco brasileiro. “Assim não dá para competir”, diz uma fonte”.[10]
Imaginem agora leitores como será pior com o novo sistema, em que os efeitos das perdas na cadeia de controle foram total e absolutamente desprezados.
A solução da questão está nas mãos do Congresso Nacional. A MP 627 está sendo apreciada por uma Comissão Mista, integrada por representantes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Diversas emendas foram apresentadas e o relatório também se dedicou ao tema.
Ao longo dessa semana terão sido realizadas audiências públicas, destinadas a debater a MP 627 e uma das questões mais importantes será a tributação dos lucros de controladas e coligadas no exterior. Na data de publicação dessa coluna já terá sido realizada a primeira audiência pública, agendada para a última terça-feira (25/2), e a segunda estará sendo realizada nesta quarta (26/2).[11]
Esperamos que as audiências sejam de valia para demonstrar aos congressistas que o tema é sério e estratégico para o futuro das empresas nacionais. Ou o sistema se modifica de forma racional, seguindo os moldes dos países desenvolvidos, e as multinacionais brasileiras terão força e competitividade na busca de novos mercados, ou fica tudo como está e os litígios se eternizarão nas costas do Supremo, prolongando uma situação de gravíssima insegurança jurídica. Com a palavra, os nobres parlamentares.
Fonte: Revista Consultor Jurídico