A Constituição Federal determina que esse imposto estadual não incide “sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica” (artigo 155, II, § 2º, X, b) [1].
Essa vantagem fiscal provocou considerável incremento das aquisições interestaduais de energia e petróleo por consumidores finais localizados em Estados limítrofes àqueles em que localizados os respectivos fornecedores, trazendo para os estados de destino grave perda de arrecadação, pela consequente diminuição de aquisições internas dos mesmos produtos.
Em reação, a jurisprudência do STF firmou-se pacificamente no sentido de que essa regra de não incidência é “benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo (Recurso Extraordinário — RE 198.088/SP, Pleno, relator ministro Ilmar Galvão, em 17.05.2000)[2].
Prevaleceu, portanto, o entendimento de que a CF excluiu a incidência do ICMS devido na saída daqueles bens do estabelecimento fornecedor, mas que o imposto deverá ser recolhido na sua integralidade ao Estado de destino, quando nele não ocorra operação interna subsequente tributada.
No mesmo sentido, o legislador complementar determinou que incide o ICMS “pela entrada” nas operações interestaduais com energia elétrica “não destinada à comercialização ou à industrialização” (LC 87/96, artigo 2º, §1º, III); e reafirmou essa determinação ao dispor que o imposto não incide nas operações interestaduais relativas a energia elétrica destinada a industrialização ou a comercialização, conforme transcrito abaixo:
“Art. 3º. O imposto não incide sobre:
(…)
III – operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização.”
A questão que se põe (e que, agora, é objeto de repercussão geral) diz respeito à extensão do conceito de industrialização referido nos dispositivos acima referidos.
Os estados entendem que a exclusão de incidência determinada no dispositivo acima compreende apenas as entradas interestaduais destinadas à industrialização ou à comercialização da própria energia elétrica, e não aquelas destinadas à fabricação (industrialização) de outros produtos.
Geralmente, as autoridades estaduais buscam suportar tal entendimento na interpretação literal do parágrafo único do artigo 46 do Código Tributário Nacional (CTN), segundo o qual, para fins de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), “considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para consumo.”
Elas extraem dessa interpretação que somente se poderia considerar destinada à industrialização a energia elétrica que fosse submetida a alguma operação que lhe modificasse a própria natureza ou finalidade; ou, ainda, aquela que aperfeiçoasse a própria energia elétrica para o consumo. Consequentemente, as operações em que essa energia elétrica fosse destinada a emprego em processo industrial de outros produtos, e não dela própria, não seriam considerados imunes pela LC 87/96.
E esse entendimento chegou a ser recentemente corroborado pelo STJ, no julgamento do Recurso Especial 1.340.323, pela 1ª Turma do Tribunal (acórdão ainda não disponível). É o que se infere da seguinte notícia publicada nesta revista eletrônica Consultor Jurídico:
“A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que é legal a cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas operações interestaduais de venda de energia. Com isso, negou Recurso Especial ajuizado por uma empresa paranaense contra o Fisco do Rio Grande do Sul.
O STJ determinou que a cobrança só pode ocorrer quando a compradora consumir a energia em processo de industrialização e comercialização de outros produtos. A alegação é de que as empresas que adquirem a energia em negócios interestaduais e a utilizam na industrialização podem ser consideradas consumidoras finais, o que atrai a incidência do tributo.
(…) quando há a industrialização e comercialização de outros produtos, o ICMS incide sobre a energia. Se a energia fosse revendida para outras companhias, o imposto não seria cobrado.”
Mas, não se pode afirmar que se trate de jurisprudência pacífica do STJ. De fato, no julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial (EDcl no REsp) 1.322.072/RS (relator ministro Napoleão Nunes, em 04.09.2012), a mesma Primeira Turma do tribunal havia mantido, por seus próprios fundamentos, o acórdão embargado cujo entendimento era o de que a aquisição interestadual de energia elétrica empregada no processo de industrialização de outros produtos não seria objeto de incidência do ICMS:
“(…)
3. No caso, trata-se de operação interestadual de fornecimento de energia elétrica a sociedade empresária que desenvolve atividade de indústria petroquímica. Não se discute, portanto, a possibilidade de creditamento do ICMS, mas, sim, a não incidência do referido tributo, em atenção à regra originalmente insculpida no art. 155, § 2o., X, b da CRFB. A idéia subjacente à possibilidade de creditamento, todavia, pode ser estendida aos casos de não incidência, tanto que o próprio legislador infraconstitucional previu no art. 2°., III da LC 87/96 que referido imposto não incidirá sobre a entrada de energia elétrica no território do Estado destinatário quando esta for destinada à comercialização ou à industrialização e seja decorrente de operação interestadual, circunstância reforçada pelo art. 3°, III do mesmo diploma legal.4. Portanto, na esteira dos precedentes desta Corte e considerando, sobretudo, a disciplina legal insculpida nos arts. 2°., § 1°., III e 3°., III da LC 87/96, tem-se que não haverá a incidência do ICMS no fornecimento interestadual de energia elétrica a adquirente que a emprega em processo de industrialização, tal como no caso dos autos, conforme demonstrado por meio de prova pericial.
5.Agravo Regimental do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL desprovido.”
Embora trate de questão relacionada à legitimidade ativa do consumidor final de energia para questionar a incidência do ICMS, a redação adotada no Acórdão REsp 928.875-MT indica que a Segunda Turma do STJ adotaria o mesmo entendimento:
“(…)
12. Se o adquirente da energia elétrica na operação interestadual revende-a ou emprega-a em processo industrial, não se credita de nada a título de ICMS (pois não houve incidência na operação de entrada). Com isso, ao revender a energia ou o produto industrializado, ele recolherá o tributo estadual integralmente ao Estado em que se localiza (destino), que é, como dito, o beneficiário da sistemática. Ou seja, há incidência e contribuinte apenas em relação à revenda ou à circulação do produto industrializado, e não sobre a aquisição da energia.13. Quando o adquirente da energia elétrica na operação interestadual é consumidor final, ou seja, não a revende ou a emprega industrialmente, deverá recolher o ICMS sobre essa aquisição integralmente ao Fisco de seu Estado (destino), na condição de contribuinte, conforme a norma excepcional do art. 4º, parágrafo único, IV, da LC 87/1996.
(…)”
A meu ver, a não incidência do ICMS nas operações interestaduais com energia elétrica destinada à industrialização compreende a energia fornecida à industrialização de quaisquer produtos, e não apenas dela própria, na medida em que toda energia aplicada em processo industrial de fabricação de bens tributados pelo imposto compõe seu custo de produção e, em última análise, a base tributável na operação subsequente.
Em outras palavras, a sua vinculação direta a uma saída posterior tributada é elemento suficiente para se afirmar o objetivo da imunidade constitucional preconizado pelo STF, qual seja, o carreamento integral da arrecadação do imposto incidente em operações interestaduais dessa natureza ao Estado destinatário.
Somente faria sentido tributar pelo ICMS a operação de aquisição interestadual de energia elétrica que não fosse objeto de nova incidência, hipótese em que o adquirente da energia elétrica encerraria o ciclo de produção e comercialização. Nas demais situações (em que houvesse saídas tributadas posteriores que tivessem por objeto a própria energia ou produtos industrializados com a sua utilização), estaria garantido o carreamento do ICMS para o estado de destino, nos termos da decisão do STF sobre a matéria.
Esse nosso entendimento tem apoio na melhor doutrina, como se verifica:
“Por operação destinada à industrialização deve-se entender a hipótese em que o destinatário utiliza o produto em processo de industrialização de produtos sujeitos ao âmbito de incidência ICMS, sejam ou não da mesma natureza que os enviados interestadualmente.
Consumidor final contribuinte, em suma, é aquele que não vai realizar nenhuma operação subsequente sujeita ao ICMS; a) com os próprios produtos (combustível derivado de petróleo e energia elétrica); (b) com quaisquer produtos em que eles venham a ser integrados; ou (c) com produtos resultantes de processo de industrialização em que eles sejam absorvidos.
(…)
É preciso distinguir entre o consumo final de determinada mercadoria (= quando não for objeto de nova operação abrangida pelo âmbito de incidência do imposto, nem compuser o processo de industrialização de outra mercadoria alcançada pelo imposto) do seu emprego ou absorção no processo industrial (= desaparecimento físico para viabilizar o surgimento de outra mercadoria alcançada pelo âmbito de incidência do ICMS).Em operações interestaduais com combustível derivado de petróleo e energia elétrica, seu consumo final implica incidência do imposto; mas seu emprego ou absorção no processo de industrialização permanece dentro de outra área de não-incidência prevista no artigo 3º, III da LC 87/96 (editada com fundamento na CF/88), posto que o ICMS incidirá integralmente na operação subsequente que vier a ser realizada com a nova mercadoria resultante do processo de industrialização e o Estado de destino receberá a totalidade do imposto, pois não haverá nenhum crédito a descontar relativamente a tais insumos oriundos de outros Estados.”
(ICMS – Combustíveis e Energia Elétrica Destinados à Industrialização – Sentido do art. 3º, III da LC 87/96, Marco Aurélio Greco, in Revista Dialética de Direito Tributário n.º 128, de 2006.)
Nesse sentido, também já se manifestou o Instituto Brasileiro de Estudos do Direito da Energia:
“(…) o conceito legal da expressão industrialização compreende, dentre outros, a possibilidade de transformação do bem em produto distinto (cf. artigo 46, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, e artigo 4º do Regulamento do IPI, aprovado pelo Decreto n.º 4.544, de 26 de dezembro de 2002), de tal sorte que, tendo a mesma sido utilizada sem qualquer ressalva na LC 87/96, deve ser entendida de forma abrangente; e (ii) a análise sistemática e finalística da LC 87/96 revelam estar o seu conteúdo a serviço da implementação do Princípio do Destino na Cobrança do ICMS, de sorte que sendo a energia destinada a qualquer processo industrial, estará preservada a cobrança do ICMS no destino, pois o ciclo industrial e comercial que se seguem a partir da operação interestadual, aos quais a energia se integra, permitirá a cobrança do ICMS exclusivamente no Estado de destino, desde que se verifique a não-incidência do ICMS na operação interestadual. Isto porque, não havendo a incidência do ICMS na operação interestadual com energia elétrica destinada ao processo industrial, ela se integrará física e economicamente ao produto final dele resultante não permitido ao Adquirente o registro de qualquer crédito de operações anteriores. Isto ocorrendo, a grandeza econômica associada à energia elétrica integrada ao processo industrial poderá ser integral e exclusivamente capturada pelo Estado de destino, na tributação do produto dele resultante.”
(O ICMS nas operações interestaduais com energia elétrica destinada à industrialização no processo petroquímico, in Revista do Direito da Energia n.º 6, de 2007)
Essa é a interpretação que, a meu ver, melhor se coaduna com a teleologia da norma constitucional que rege a matéria.
[2] O STF reiterou em diversas outras oportunidades o entendimento adotado no RE n.º 198.088/SP. Nesse sentido, vejam-se as seguintes decisões: (i) AI-AgR n.º 306.620/DF (Relator Min. CEZAR PELUSO, em 11.10.2005, Primeira Turma) e (ii) RE-AgR n.º 414.588/SP (Relator Min. EROS GRAU, em 31.05.2005, Primeira Turma